segunda-feira, 30 de julho de 2012

Uma persona

Este paper discorre sobre - um bios-mediático? - a tridimensionalidade de um corpo feminino oculto por seus véus e disfarces transformado, segundo nosso entendimento, em espectro, uma imagem bidimensional sem os recursos técnicos de luzes, ângulos e montagens de uma fotografia. De todas as possibilidades para desvendar o escondido, era sem dúvida, uma poética sem movimento, como um porta-retratos, sem gestos, em silêncio, com o olhar fixo participando como ouvinte de uma palestra sobre os meios de comunicação. Cheguei um pouco atrasada ao evento, em silêncio ocupei um lugar em círculo, olhei para o simpático palestrante, observei ao redor, vi rostos conhecidos e cumprimentei com sorrisos, e, quase à frente, um pouco mais à minha direita olhei para a jovem com cerca de 20 anos, fixei o olhar, divaguei na contemplação do todo por alguns instantes, de um todo estranho ao ambiente, mas não à urbanidade. Contemplação que nos remete a Schopenhauer, da apreensão da idéia, coisa imutável, pertencente não a uma dada era, e que só pode ser comunicada e apreendida de uma só vez pelo que é estranho, estético e poético, uma fruição exterior a todas as relações e que não se expõe ao encadeamento da experiência. Olho cósmico uno que abstrai qualquer pensamento, que nos remete à poética de Gaston Bachelard que traduz essa fruição como adesão total a uma imagem isolada, no êxtase da novidade da imagem. Passada essa pequena pausa de contemplação do todo, dessa súbita imagem imprevista, passei a delinear os contornos e o seu monocromismo, e continuei a fixar o olhar, queria um retorno de um sorriso, mas era uma estátua intangível e então comecei a decupar do icônico da imagem para os seus elementos indiciais. Os cabelos eram negros, escorridos, milimetricamente arrumados... e assim foi a perda da figura-fundo da voz do palestrante. Nela não havia figura-fundo, consegui ainda assim divisar o sopro dos incorporais dos estóicos, aqueles inexprimíveis que oferecem aqueles vagos e inquietantes sentimentos. E continuei a percorrer os ostensivos signos: uma longa e muito lisa franja dividida ao meio um pouco mais abaixo da altura das narinas, e atrás os cabelos deveriam estar presos? Ao contemplar uma estátua, pela sua tridimensionalidade, podemos circular por todos os seus ângulos, observar os contornos nos seus detalhes, do perfil, das pálpebras, da boca; observar a distância do nariz até os lábios e reconhecer uma etnia, se a escultura é representação da perfeição dos deuses gregos ou dos simples mortais com suas belíssimas assimetrias de esquerda e direita, em pinturas somente possível divisar pelo movimento cubista. Não, definitivamente era mesmo um retrato lavado da manipulação técnica, sem figura-fundo e sem legenda. Os olhos estavam carregados de uma pintura grossa e negra, a roupa com botões simples também totalmente negra. O monocromismo é próprio do fenômeno da percepção sensorial da era das imagens, iniciada gradualmente com a revolução de Guttemberg. A era das imagens exercita e estimula todas as possibilidades da percepção visual, inclusive a periférica que é monocromática, em oposição à visão central sensível às cores e às texturas. Conforme especialistas dos efeitos subliminares, e a própria Gestalt, o que a visão central e a consciência não captam, a periférica monocromática captura e envia essas imagens ao cérebro mesmo sem a percepção consciente. Diz o compositor Emanuel Dimas de Melo Pimenta que “a aparição da visão central coincide com a intensificação do mundo acústico, da sociedade essencialmente gregária, oral, tribal e feudal, das trovas, do canto e da não escritura, e com a imprensa de tipos móveis de Guttenberg a ampliação dos sentidos da visão”, e que podem ser observadas inclusive na lenta e gradual perda das cores das catedrais. No urbano, o contemporâneo casaco preto desfila na paulista sem um rosto, o homem das multidões de Edgar Alan Poe; ser anônimo na grande cidade é o desejo de muitos habitantes de pequenas cidades interioranas que não conseguem fugir da curiosidade de olhares alheios. Dessas recordações lembro ainda de um professor baiano que ao observar o cenário monocromático de “sampa” teve a percepção de que não poderia vestir a calça vermelha que tinha trazido na sua bagagem... Sem nos darmos conta, o negro é o uniforme das noites paulistanas, então por que tanto interesse naquela imagem feminina? Grande paradoxo urbano! Sim, o retrato parecia um espectro, uma superfície plana impassível, sem mesmo conseguir observar o quanto as pálpebras estavam pintadas porque não foi possível capturar um simples piscar de olhos. Também não havia agressão, se pelo menos tivesse havido um olhar de repreensão... Se tirasse ali uma foto, talvez o flash deixasse transparecer o que havia por detrás daquela camuflagem, um sorriso, uma ruga na testa, quem sabe mostrar a língua em rebeldia à curiosidade alheia. Fui tomada pela forma e a fazer associações de um passado não muito longínquo. Pela explosão de uma imagem, diz Bachelar, “o passado longínquo ressoa em ecos e não se vê mais em que profundidade esses ecos vão repercutir e cessar”. Esses ecos são labirintos de pensamentos, de evocações da experiência de ter convivido com jovens roqueiros e metaleiros dos anos 90 sempre de preto, surrados, tênis rotos repletos de velcros, cabelos compridos até atingirem a maturidade, um grande desleixo que não havia na representação daquela imagem feminina. Era na galeria do rock que essas personas se sucediam umas às outras. Antes, bem, antes, uma conhecida gótica, não sei se continua assim, era excêntrica não apenas pelo traje negro, mas pelo humor e distanciamento nas relações. Ser gótico é pertencer a uma comunidade originária dos anos 70, subcultura que surgiu como resposta à homogeneização e pasteurização dos primeiros tempos dos media, com grande interesse para cultura e literatura eruditas, pelo gosto do mundo dos mortos, do vampirismo, pela solidão, enfim pelo negro do luto. Esta era uma possibilidade provável e talvez previsível tentativa de fazer uma legenda para o retrato, mas sem conhecer as suas verdadeiras razões passamos da evidência à suspeita da invenção, da manipulação do texto que restringe a imagem. Ordem invertida à da fotografia que é pura invenção, sem exceção, como diz o escritor e fotógrafo Fontcuberta. Sem dúvida, insistimos na ideia de querer enquadrar as pessoas com suas legendas, e as pessoas mais sensíveis e avessas à hibridização, às “bandas largas” necessitam desse enquadramento de pertencimento, e os estereótipos chegam ao seu fim. Melo Pimenta reforça esse pensamento: “El estereotipo toca a su fin com la introducción de sistemas de hipertelecomunicación interactiva em tiempo real. La ilusión de contiguidad pasa a ser algo tipicamente literário y ya no es la referencia central de toda la organización lógica” . É a necessidade do gregário provocado pelas brechas deixadas pela globalização, e se cada um era artista de si mesmo, via de mão única, isto é coisa de passado recente, da sociedade do contrato que criou o individualismo. Nas divagações para encontrar uma legenda, ainda restava o traje como qualquer outro disfarce, a persona, a máscara através da qual o jovem precisa se esconder, como a longa franja encobrindo praticamente todo o rosto da adolescente personagem Violeta Pêra do desenho “Os Incríveis”, com a pertinência de seus super poderes de tornar-se invisível. Mais do que os homens, as mulheres, e não apenas as adolescentes precisam usar esses véus nos seus tempos cíclicos de privacidade de não deixar escapar a sua natureza misteriosa. A junguiana Clarissa Pinkola Estés lembra que nos anos 60 “as mulheres passavam o cabelo a ferro, deixavam crescer longas cabeleiras, e usavam como uma cortina, como se o mundo estivesse nu demais, e o cabelo pudesse isolar o frágil self de cada uma. Pena da mulher moderna que não tem véus para usar, manter-se oculta, poderosa e adequadamente fora do alcance” . No término da palestra não tive a chance de observar o movimento da saída, não vi, a perdi de vista. A assepsia meticulosa do disfarce do negro é um chamamento provocativo para quem tem apenas o interesse de se ocultar. Um grande paradoxo! Maior ainda depois da consentida entrevista via e-mail: - Quanto mais olhamos, mais você fica intangível. O que se esconde por detrás? - Se eu escondo, não tenho porque contar. Referências bibliográficas: BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. FONTCUBERTA, Joan. El beso de Judas: fotografia y verdade. Barcelona: Gustavo Gili, 2000. MELO PIMENTA, Emanuel Dimas de. El futuro de la música del futuro. In: MIRANDA, Eduardo Reck. Música e Novas Tecnologias. Barcelona: ACC Angelot, 1999.