sexta-feira, 1 de abril de 2016

OUVIDO ABSOLUTO - Música Eletroacústica em Pauta (Entrevista com Nilton Cesar de Souza Costa - março de 2012)

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A entrevista com Nilton Costa foi uma conversa informal e gravada no café da Livraria Cultura da Avenida Paulista. Com muita espontaneidade, sem se preocupar com a linearidade, própria da escrita, Nilton, 50 anos de idade, discorre sobre sua infância, da adolescência na 6ª. Série, das aulas monótonas, e de apanhar dos professores porque nunca estudou nem mesmo apontamentos de classe ou lição de casa. Na época sua mãe assinava e recebia os livros da coleção ‘Círculo do livro’ em casa. Nilton lia todos e considerava muito mais interessantes aquelas leituras,  - como a literatura russa de Dostoiéviski  – do que ouvir as premissas curriculares da professora, ‘a famigerada dona Maria do Carmo’. Conta que, por um acidente, devido ao tédio, acabou pondo fogo na cortina da sala de aula, coisa que só agravou o seu estado de marginalidade dentro da comunidade escolar ‘tacanha’. Não apenas foi mandado embora da escola, mas o diretor, trêmulo de raiva, acabou por rasgar o seu prontuário.  Nilton não se incomodou. Hoje, o seu Registro de Identidade consta analfabeto. Gosta de mostrar o seu RG, identidade que não condiz com a sua erudição musical, conhecimento e intelectualidade. Diz ele que é um pouco solitário, vive no seu mundo, nunca casou e mora com a sua mãe Jacy: “Na melhor tradição de um Ortega y Gasset, misto de um Bukowski, pela vida marginal, fora do mainstream.” Afirma que devido a sua condição de outsider, não pertence à classe sócio-econômica nenhuma. “Afinal, marginais não tem categorias sociais”.
Aos 18 anos prestou serviço militar (2º. Batalhão de Guardas/2ª. Cia.Fuzileiros), tendo no final do seu primeiro período de serviço sido enviado para prestar serviços nas tropas de intervenção da ONU, em Angola, em 1978, ainda nas fileiras do Exército Brasileiro. Terminado seu período de serviço, deu baixa e alistou-se na categoria de mercenário, ainda em África, na milícia antiterrorista da Namíbia sob ordens do governo sul-africano. Após três anos de ação em linha, voltou ao Brasil e deu por encerrada a sua vida militar.
A presença de Nilton é excêntrica, com uma grande barba branca, de óculos, está invariavelmente vestido com roupas de caráter militar; porta uma bengala que diz ser uma arma, uma espada oculta na bengala.
É amigo de Flo Menezes desde 1993, sobretudo por intermédio de seu pai, o poeta Florivaldo Menezes, que conheceu antes do filho por se tratar de um entusiasta de música de vanguarda como o poeta.
Nosso primeiro contato foi no concerto de música eletroacústica em maio de 2011, e acabamos nos tornando ‘ligados’ por compartilhar e fruir de um mesmo tipo de música.
A seguir, alguns trechos da entrevista/conversa que durou mais de 3 horas:


Helena - Quando começou a gostar de música da eletroacústica?

Nilton –
Meu interesse por música não se restringe à música da eletroacústica. Ouço todos os tipos de música contemporânea.  A música da eletroacústica é apenas uma modalidade dentre uma variedade muito grande do que se faz hoje na música. Música concreta é a única que sobrevive, na realidade.
No período em que frequentava a escola pública ia à noite como opção, era quieto e isolado. Comecei a trabalhar para manter os estudos vendendo jornais na PUC, no bairro do Bexiga, etc. A música, como tudo, entrou naturalmente na minha vida. Desde pequeno a música foi uma necessidade. Aos 12 para 13 anos já ouvia muita música e comecei a ouvir as músicas desde o período do século XIII. Quando ao final terminei de ouvir até o final do século XIX, início do século XX, pensei: A música erudita não pode terminar por aqui, deve haver uma continuidade. Foi assim que descobri a música contemporânea; ninguém me levou a um concerto, ou me falou sobre as evoluções musicais.  A partir dessa idade, dos 16 anos, ouvia o dia inteiro, ia a concertos, não havia seletividade. O negócio era ouvir, e não fazer música. Nunca tive vontade de aprender música. Durante a tarde ouvia essas coisas, e lia também, e depois saía à noite.
A música europeia, a música erudita é a arte dos sons fixados, há muitos gênios por aí. Uma pena que essa moçada da academia conheça tão pouco sobre música contemporânea como deveriam. De fato chega a ser uma lacuna cultural quase que imperdoável para tais profissionais. Estão sempre repetindo os mesmos nomes. 
Os nomes consagrados, no final, acabaram por se tornar estéreis como o Boulez e o Stockhausen.  Nomes que consideraria muito bons como porta de entrada para a ‘música nova’ são  Debussy, Satie, Charles Ives, Carl Ruggles.
É necessário conhecer a música do Michel Chion e os seus livros sobre música contemporânea; ele é inclusive cineasta. Uma frase dele muito interessante é que música é ‘cinema para os ouvidos’.  Ele tem um pequeno mas fundamental livro que serve bem  como um vade mecum, para uma escuta mais rica e detalhada da arte dos sons fixados, como Chion costuma denominar o fenômeno musical. 
Os historiadores são como caranguejos, estão sempre olhando para trás. Nietzsche diz que primeiro precisamos pensar, e depois ler.

H. Você passou um tempo na França e acabou tendo contato maior sobre os desdobramentos da música concreta. Pode falar sobre essa nomenclatura interessante que é a música concreta?
N. Para falar sobre a música concreta seria necessário recordar-se da figura de Richard Wagner. Apesar de ele ser comumente conhecido como um mau cárater, anti-semita, não podemos negar a sua imensa genialidade inventiva. Ele não era pessoa de formação musical estrita, acadêmica. Interessava-se bem mais por teatro e literatura, entre outros ramos de atividade estética. Quando começou a compor já era um adulto feito, sem ter passado por uma vida de formação acadêmico-musical oficial. Mas era extremamente intuitivo, pois pode perceber que as condições estético-composicionais deveriam ser revistas. Pois bem, para compor o Tristão e Isolda ele precisou colocar na música aquela bobagem toda sobre o amor que precisa acabar em morte, aquele romantismo psicológico horroroso.  Então, para que a música tivesse esse componente psicológico, ele inconscientemente acabou destruindo os tecidos formalistas da música, acabou destruindo a tonalidade. Ele foi um inescrupuloso, sabe-se inclusive que ele foi um grande (senão o maior) inspirador do movimento nacional-socialista e do moderno anti-semitismo militante europeu.  Muito bem, mas ele conseguiu quebrar o sistema tonal dominante,  como tentativa de colocar em música o caráter psicológico e metafísico dos personagens, para criar um fio condutor, e queria uma amarração emocional entre a música da ópera e o ouvinte. Aquela era uma trama schopenhaueriana, metafísica, amor perfeito só completado pela morte. Isso na verdade não foi um processo isolado, muitos outros compositores também estavam quebrando o tonalismo. O diatonismo já não era o suficiente, já estávamos no início das agonias estéticas que adviriam durante e após a agonia da  belle époque.
Os pós-românticos, tais como: Mahler, Strauss e Hugo Wolff se esforçaram com sucesso para superar a crise da harmonia na música. Paralelamente surgiram alguns criadores que resolveram desbravar este terreno virgem da ausência de tonalidade, dentre outras modalidades de composição.  Então, temos o princípio do assim chamado atonalismo experimental com precurssores como o theco Alois Hába, o russo Obukov, entre outros tantos. Arnold Schoenberg principia as suas composições e investigações criativas com o sistema atonal já devidamente sedimentado, salta, a seguir para o sistema dodecafônico, que dará todo o impulso para o serialismo nas suas diversas facetas.  Temos o impressionismo, oriundo do orientalismo cujos representantes são, dentre outros, Claude Débussy e Albert Roussel. Foi nessa época que começaram a aparecer as experiências mais radicais, como a abolição do tempo, das cadências, da espacialidade, um movimento que coexistiu com o movimento dadaísta. Quem são os verdadeiros compositores dessa arte pouco falada? Dessa nova seita musical? São os polemistas, mais do que músicos, que começam a compor o bruitismo, o futurismo (Marinetti, Russolo, etc.). A poética a partir de então foca-se na materialidade bruta das máquinas, como a nova simbologia que norteará a poética composicional doravante.

H. Como John Cage?
N.  John Cage vem depois, juntamente com Colin Mcphee, George Antheil.  O dadaísmo se apossou desse patrimônio do futurismo, que propunha a tese de todas as convenções mortas de expressão, do romantismo, do bélle époque. Tudo estava podre. Outras coisas interessantes aconteciam concomitantemente nos Estados Unidos. O francês Edgard Varèse, (que morou e faleceu nos Estados Unidos em 1965) nesse período, fez umas coisas muito interessantes, criou uma fonte de expressão para microfenômenos (obras que evocam manifestações do mundo químico e geométrico), mas transformados em imensos eventos.  Varèse é o primeiro a utilizar percussão em suas peças. Stravinsky com A Sagração da Primavera fez uma  barbárie (!): fazer uma peça absolutamente ultra-moderna no mais profundo arcaísmo, muito contrastante, mas superou esse período.

H. Sobre Pierre Schaeffer
Schaeffer era um camarada europeu, de classe média. Tinha piano em casa, educação musical regular, curricular, um técnico de som da Radio France. Naquela época o místico Gurdieff estava em Paris; entre outras coisas era musicoterapeuta, sabia da importância da música para os centros de equilíbrio do corpo. Em Paris, Gurdieff ficou um período trabalhando num Instituto maluco, tinha alugado um palácio em Fontainebleau, e ali reunia decadentes, dadaístas, etc., para infindáveis discussões sobre misticismo e coisas muito estranhas. Fazia suas palestras e no final desconstruía, desmontava toda a sua palestra, e perguntava por que ninguém questionava os seus argumentos. Numa dessas reuniões Pierre Schaeffer estava presente, e escutou, pela primeira vez, uma palavra mágica. Essa palavra mágica é a acusmática: Gurdieff contou para os ouvintes de suas palestras sobre a Escola de Crotona, em que Pitágoras ficava escondido atrás de um biombo para que seus discípulos não se distraíssem com o olhar. Shaeffer saiu dali e fundou um grupo para pensar na palavra mágica, descrita por Gurdieff. Em seguida, Schaeffer passou a gravar tudo o que ouvia. O som torna-se concreto com a gravação, e a música concreta é um conceito, um conceito daquele que não vê, apenas escuta.
Em seguida, os alemães não gostavam dessas coisas de gravar os sons naturais para um posterior processamento. Preferiam seguir a tradição da música senoidal – baseada em toda a tradição composicional ocidental já existente. Assim, fundaram um ano depois, aproximadamente, em Colônia na Alemanha um estúdio de música eletrônica.
Muitos foram os jovens compositores oriundos de diversas regiões europeias e mesmo de fora do continente que tomaram parte nesse empreendimento alemão gerido por Herbert Eimertie e Herbert Brum. Anos mais tarde, a junção das duas, a música eletrônica e a música concreta deram origem ao que alguns denominam de música eletroacústica, genericamente.

H. Conhece o músico Emanuel Dimas de Melo Pimenta?
N.Sim, sou um grande fruidor da música dele. E acho um absurdo ele nunca ser convidado para fazer seus concertos no Brasil. Essa moçada também não conhece os trabalhos dele.  Só sabem que o pai dele é relojoeiro. O Emanuel está numa escala de formação, de conceito, que é galáctica.

H. Qual a experiência de ouvir uma música contemporânea em sala escura?
Velha pergunta...! Vai ao encontro das minhas necessidades emocionais, íntimas, espirituais, estéticas. A fruição pela fruição, simplesmente ter uma satisfação interna. A prática também transforma aquilo em natureza, quando ouço a música como um todo, a de estúdio de caixa acústica. Prazer incomensurável, não porque ela vem responder uma demanda, mas porque a música não podia morrer naquela que se compunha há 100 anos, na primeira escola de Viena. Por uma espécie de inconsciente coletivo ela tinha que evoluir, havia algo mais na carcaça, mais visceral. A disposição dos alto-falantes.., especificamente, é um fenômeno físico-acústico, mais bem desenvolvido, música auditiva. Como diz Chion, cinema para ouvidos. É possível ver com os ouvidos, ouvir com os olhos. Com 60 bocas de som, a plateia toda sente um prazer absoluto. Sons trabalhados, recodificados, é a coisa mais linda que existe.
Essa novidade tem mais de 55 anos, e ainda hoje há uma separação inevitável, um público restrito, porque falta informação, treino. O físico-acústico incomoda muitos. Não houve casamento entre público e a música atonal e serial, o que dirá com a música contemporânea, acusmática. A música me alimenta. Falar sobre o que falamos também alimenta.

H. Vou desligar o gravador porque você não para de falar coisas importantes.

Obs.: Conforme informações de Nilton Costa, a primeira peça para tape foi produzida em 1946, tendo como precursor o egípcio Halim Al Dahb. O músico Dahb morou e veio a falecer nos Estados Unido; e fazia parte do círculo de musica de tape music norte-americano. A produção intencional da peça tinha 9’ de duração.