Uma
carta datada de 1970, escrita em São Paulo, esboça as transformações culturais
e seus valores ocorridos na década de 60. A carta é um conto, uma ficção do
escritor Raduan Nassar. Ali o protagonist rompe o seu relacionamento com Paula,
sem uma exposição de motivos convincente. Não há explicações lógicas, mas ressentimentos
e uma incomunicabilidade não apenas no léxico, mas numa incomodante conduta de
liberdade e independência de sua parceira. Uma jovem intellectual sem
subserviência e passividade, usufrui apaixonadamente da contra-cultura dos anos
60. O maduro autor da carta, no conto “O Ventre Seco”, declara
indiferença
e muito cansaço em conviver com todas aquelas “gentes maravilhosas”. O abandono
de Paula não se dá exclusivamente pela dificuldade de adaptação de um homem
avesso aos tempos modernos ou pela ausência de atributos de feminilidade no
masculino. Paula não é unicamente uma mulher independente, é algo mais como a
avidez de tudo viver, tudo experimentar, a fome do ego-corvo que aceita
cegamente o que aparecer. A criatura como corvo, segundo Clarissa Pinkola
Estés, teme que a paixão termine, como há a sombra de um medo do fim do dia, do
término do prazer, como uma criança egoísta que quer a melhor fatia, a cama
mais macia, uma vida que pode se reduzir a cinzas, como as de Marilyn Monroe e
Janes Joplin. (Estés, 1994, pg. 188).
Na década
de 40, na obra “O segundo sexo”, Simone de Beauvoir, ao analisar as obras de
D.H.Lawrence, relaciona entre os seus personagens marculinos uma má vontade em
relação à independência feminina. Lawrence, diz Beauvoir, detesta as mulheres modernas
porque estão sempre reivindicando alguma coisa, quando elas deveriam ser feitas
para entregar-se, não para possuir, retratando nesse caso mulheres livres,
dominadoras, falhando portanto em sua vocação feminina. Os heróis, segundo
Beauvoir, os que aparecem em suas obras ou são condenados ou sábios,
despontando arrogância e orgulho, cabendo à mulher subordinar-se, inclinar-se
diante dessa divindade (Beauvoir, 1980. Pg. 266).
Existe
certo desconforto, talvez amargura, nos poucos escritos de Nassar quando
relacionados ao par amoroso. Em “Lavoura Arcaica”, a febre da transgressao, do
excesso cometido pelo incesto culmina em tragédia, quando o pai descobre na
erotica dança em família o jogo da
paixão entre os irmãos e em um só golpe mata a sua filha na presença de todos. Ela a culpada, ela a depravada que aliciou o
irmão para o pecado, e para o protagonista a absolvição, já que ao homem, na
tradição arcaica, lhe dá o direito de perder a consciência, a racionalidade,
quando é seduzido pelo demoníaco e prostituído feitiço feminino. Ainda no conto
“Hoje de Madrugada” de Raduan Nassar, o protagonista insone, no seu escritório,
ergue os olhos da mesa e encontra outros
olhos implorando um pouco de amor e afeto, e em troca ele responde com o silêncio
da negação; e como se fossem objetos decadentes, desembaraça-se dos seus dedos
passando por sua nuca, dos pés deslizando pelas suas pernas; não se surpreende
com a obscenidade do seu corpo, o laço desfeito do decote, dos seios flácidos
expostos, nem da expressão do rosto de sua mulher denunciando demência. Compaixão
é para os fracos, para as mulheres, como o é também o sentimento de vingança,
diz Niezstche. Tomas, no entanto, personagem de Milan Kundera, experimentou a
compaixão. No romance “A insustentável Leveza do Ser”, Tomas, movido pelo
desejo de se apoderar da infinita diversidade do universo feminino, tinha
obsessão pelo relacionamento efêmero com tantas mulheres, era como se pudesse
se apoderar de um minúsculo fragmento do feminino a cada encontro; no entanto,
abandonou tudo por Tereza por compaixão, maior do que o seu próprio sentido, um
co-sentimento, uma arte de telepatia das emoções e assim sentir e sofrer junto
à frágil Tereza, e desistir até mesmo da artista e liberada Sabina. Mas essa
leveza e inteireza tornaram sua vida insustentável.
Yin e yiang
Os pares
amorosos de literatura menor também dão seus testemuhos de encontros e
tragédias, afetos e desencontros e se mesclam à existência do cotidiano da
mesma forma que os grandes clássicos. Um dilema universal centrado na diferença
dos gêneros transcendendo culturas ou experiências particulares e seus
contextos? Se há um consenso de que há incomunicabilidade entre os gêneros é
porque as diferenças são marcantes. Se se fala da possibilidade da comunicação
entre os gêneros não se elimina, da mesma forma, a viabilidade da existência da
diversidade desses padrões. Simone de Beauvoir diz que ninguém nasce mulher,
sendo a cultura, a sociedade a única responsável pelo devir mulher. Para a
autora as diferenças teriam sido operadas pela dominação da sociedade
falogocêntrica e patriarcal, irrelevante portanto a distinção fundamentalmente
biológica do seu aparelho sexual, dos seus ciclos, da incubação gestatória e
seus vínculos com a prole, além de sua fragilidade psíquica.
Para
Richard Dawkins, o autor do “Gene Egoista” a espécie humana, como todo o reino
animal, opera como máquina criada para a sobrevivência dos genes e esses genes,
bem sucedidos, são implacáveis e egoístas. São eles, os genes, os replicadores
e nós a sua máquina de sobrevivência, onde a evolução é um bem do indivíduo e
não do grupo, lembrando que o macho seria potencialmnte capaz de fazer milhões
de filhos todos os dias, e seriam por esse motivo os parasitas, e elas, as
fêmeas exploradas pelo tamanho de seus óvulos, pelo tempo de gestação e a
limitação do número de filhos. Um altruísmo puro e desinteressado seria difícil
de ser encontrado na natureza. Em relação especificamente aos seres humanos,
Dawkins considera que as diferenças da dinâmica biológica contam pouco e os
seres humanos seriam investidos dos papéis que a sociedade e a cultura lhes
impõem, seriam as memes, os replicadores culturais mais potentes do que os
genes egoístas, mas é significativo o número da deserção familiar paterna.
Mulheres e sua prole continuam a ser abandonadas. O biólogo Humberto Maturana,
em oposição às teorias de Dawkins, acredita que a cultura oculta a natureza da
dinâmica do bem-estar, do compartilhamento e do amor, seria a natureza
espontânea dos primórdios do homo sapiens
amans amans. O físico quántico Fritjof Capra tem a mesma linha de
pensamento: os comportamentos destrutivos, o excesso de agressão partiriam do
contexto e seus valores culturais.
Para além
da cultura, no entanto, investigações e experimentos como o de Simon Baron-Cohen
revelam que as diferenças de sexo não são apenas do aparelho reprodutor, mas de
operações mentais entre os gêneros: a primazia do pensamento para os homens e o
sentimento e as emoções para as mulheres.
É sabido
que até as primeiras seis semanas de gestação em todos os mamíferos o padrão
básico do desenvolvimento fetal é feminino, isto é, o sexo feminino é o
princípio do mundo biológico, com a duplicidade idêntica dos cromossomos em XX.
A partir portanto da sexta e a oitava semanas de gestação, com a produção das
diferentes doses hormonais de testosterona, até então corpo e cérebro feminino,
passariam por modificações específicas para o padrão masculino. Os estudos e
experimentos sobre as habilidades mentais e comportamentais entre meninos e
meninas indicam que as mentes masculinas são melhores em sistematização, uma
capacidade de analisar, explorar e construir sistemas como se nascessem com uma
física popular em sua constituição biológica. Ao passo que as meninas são mais
bem dotadas para a empatia, o reconhecimento da singularidade dos sentimentos e
desejos do outro. A tese de Baron-Cohen, sob essa perspectiva, é a de que
haveria cinco principais tipos de cérebro e oscilações entre as habilidades e
atributos femininos e masculinos, e na ponta estariam os excessos. Um cérebro
extremamente masculino estaria correlacionado ao autismo, altamente sistemático
mas nulo na capacidade de interação social, e do outro lado, o extremamente
feminino que provocaria talvez a síndrome de Williams (Walzbort, 2005).
Se a origem
do mundo biológico é o feminino, a forma primordial da sexualidade é da mesma
forma a feminilidade, segundo Joel Birman, em “Cartografias do feminino”. Mas
essas e outras características como a das incertezas, da singularidade e do
heterogêneo e outras, não seriam privilégio apenas das mulheres, mas também dos
homens, transcendendo os gêneros, perpassando os corpos. Essas oscilações entre
os dois sexos não é novidade, faz parte do conhecimento milenar chinês sobre os
arquétipos yin e yang. Os antigos chineses consideravam os olhos um órgão
perceptivo masculino, o yang, dominador, agressivo, com orientação para a
análise e superficialidade; enquanto o ouvido, a concha, o receptivo, o órgão
yin, prestativo, intuitivo e espiritual, conforme Ernst Berendt. Capra lembra que a atitude milenar da
sociedade ocidental confere aos homens a maioria dos privilégios e papeis
sociais sendo a origem da ênfase aos aspectos yang como competição,
agressividade, pensamento racional, e certa supressão da orientação dos modos
de consciência yin, ou femininos.
Para o
misticismo oriental, a realização plena do ser humano seria alcançada pela
unificação da dinâmica desses arquétipos. Essa simbolização da unidade dos
opostos pode ser encontrada também na religião hinduista com a escultura de
Shiva, no templo de Elephanta, como uma forma andrógina, metade macho, metade
fêmea. (Capra). Para entender as oscilações dos arquétipos yin e yang, Capra
faz uma ilustração com uma bola percorrendo um círculo em uma velocidade
constante, e sua projeção reduziria a velocidade à medida que se aproximasse da
borda, depois a aceleração e mais uma vez a redução da velocidade e assim um
suceder em ciclos intermináveis.
Novembro-2017
Estas são
pistas para a exploração do Arquétipo da
Inteireza, ou da unificação da dinâmica desses opostos, aprimorando em cada ser
confiança, leveza de vida e inteireza sem precisar do outro. E encontrar nesse
arquétipo a abundância e o amor incondicional, como uma forma inexplicável de
alegria.
O Arquétipo
da Inteireza foi amplamente discutido pelo ativista quântico Amit Goswami, em
São Paulo.