sábado, 2 de dezembro de 2017

Intensidades




14-junho-2017- Fico pensando no infinitamente infinito spinoziano. Escureceu mais cedo nesta tarde de outono. Estados de duração.  Abro a janela do alto do edifício, as luzes da maioria das casas já estão acesas mas os homens e mulheres que trabalham não devem ainda ter chegado em casa. Olho para o  trânsito, consigo cheirar a poluição que castiga os moradores desta cidade.  Há pouca gente na ruas, os cachorros estão quietos. Porque? Se já passa das !8h? Não há vento nem garoa, mas um céu nublado, um pisca intermitente de uma torre, algumas luzes amarelas.  Apenas um cachorro começa a latir. Já são todos urbanoides. A temperatura está baixa para esta época do ano. Eles devem estar com frio. Ouço o relógio de pêndulos na sala completamente quieto. Não estou só. Os objetos, móveis e todos os penduricalhos, as  plantas e a minha Julie,  estão um a um interligados no meu raio de pressentimentos.
30-junho- O cuco está quebrado. Não há som do tic-tac, mas ausência de som da engrenagem desse objeto. Deve haver som exalando dos assoalhos, da caixa do cuco, do porta perfume entalhado, das madeiras orvalhadas que se retraem serenamente no outono. Em cada ruído, uma duração, um tempo que passa. O som não é o tempo, mas ele conta o tempo. Como na batuta do maestro: um, dois, três…, dando início aos instrumentos. No outono, a cada alarme de carro disparado, é possível ouvir infinitas folhas secas rolarem, sem se dar conta de que é possível contá-las. É ouvir todos os dias de manhã a senhora de lenço amarrado varrendo a calçada se queixar das folhas secas no chão: - Quanto lixo! E todos os dias, até a minha Julie já sabe, que elas apenas são materialidades em decomposição, servindo de tapete para fazer arte de rua, pixando a calçada de amarelo ferrugem. Temporalidades distintas para Bergson, Einstein, Deleuze, Lapoujade, e quem mais. Muitos outros filósofos se ocuparam desse tema, como o pré-socrâtico Heráclito definiu aión como um tempo do acaso, do jogo e da brincadeira, ou um enorme período de tempo ou a eternidade, ou ainda transformado em kairós, o tempo certo ou oportuno. Quando o tempo é oportuno?
 O que conta? O eterno retorno, as estações, as colheitas, a rotina, as festas, o voltar para casa. Com o cronos, a flecha do tempo. Os segundos, a música, os séculos? Os ossos. Tudo conta. Como se conta cada uma das preciosas pérolas ou margaritas arrancadas com torniquete das ostras ou mexilhões, formando preciosos brincos, pulseiras ou colares, hoje cultivados artificialmente pelos japoneses, e vendidos a granel pelos chineses como pura imitação. Predadores dos mares, das pérolas, das baleias.  Viveremos mil anos no futuro, mesmo com ameaça do antropoceno? Haverá mundo por vir?, pergunta Viveiros de Castro. A ciência quer que nos submetamos a ela. Transformar a natureza das coisas, da materialidade e do espaço para um tempo, uma duração para além do tempo finito. Não se trata do infinito spinoziano. Ele se assemelha às temporalidades deleuzianas… infinito enquanto dure uma intensidade. Pode ser atemporal?
04-julho - Mas e as teorias outras que nos levam a vibrações distintas e a compossíveis  paralelos ? A escolhas que já fizemos através dos mantras, pensamentos, sentimentos e emoções? Sentada ontem na poltrona recebendo infusão no ambulatório quimioterápico lembrei com perfeição da pequena criança correndo agasalhada com uma malha listada de vermelho e branco, pernas nuas e pés descalcos recebendo o frio como quem compartilha, na língua do tatibitati, os seus segredos de gozo de pele gelada a um confidente especial, o frio. Uma grande descoberta. Corria e soltava gritinhos de alegria quando tentávamos alcançá-la. Alegria pura. Um instante, um momento que dura a eternidade.
Em oposição, recordei da mulher que varre a sua calçada me indicando um produto farmacêutico para queda do meu cabelo cortado com máquina três.
Três semanas depois do início do tratamento o chão do banheiro estava repleto de cabelo. No dia seguinte lá estava eu pedindo para passar a máquina. – Tem certeza? – Não é melhor esperar? Não! O mais difícil é a perda do cabelo, ia acabar ficando uns pequenos tufos, como muitos que arrancam os seus cabelos literalmente porque não há mais o que fazer. – Sim, corta. É melhor não cortar, mas arrancar a erva daninha pela raiz. Mas os cabelos… não, não. Cortar como podar, potencializar. Senti uma grande fadiga, as pálpebras tinham dificuldade de se manterem abertas. Olhei de viés para os meus olhos no primeiro exame positivo, e eles estavam caídos sem vida, perdidos em vazios.  – Tem muito cabelo ainda. Não precisa cortar agora. Raspa! Esperei tirar tudo, passei a mão na cabeça, e a sensação foi deliciosa. Gostei do espetado e só aí olhei para o espelho. – Parece um homem, vovó! Hoje ele passa a mão para fazer carinho. Kairós ou Aión? Um tempo oportuno que é pura intensidade.

11-julho - O tempo pode não contar, suspender, parar para as intensidades, mas é o terrível cronos que marca o conta-gotas da bolsa de remédios e veneno descendo pelo micro tubinho de plástico entrando direto na veia.  Antialérgico, corticoide, antinausea. Herceptin que vai em busca de ainda algum DNA intruso, e por fim a toxina que mitiga o nosso sangue, o taxol, responsável pela queda do cabelo e pelos, da cor amarelada da pele, vampiro que vai sorvendo e varrendo tudo o que está pelo caminho. O que vai acontecer? O corpo amolece sem resistência, os pensamentos cessam, mas não é possível dormir, sublimar o tempo. A vigília é constante, pode-se ouvir as batidas do coração, os gemidos dos órgãos, a saliva no canto da boca, quando tem. Deixa lá molhar o travesseiro, como uma velha. Aguarda-se a intensidade da vida, a palavra carinhosa que vou absorvendo a cada manhã que acordo, a cada noite que escorrego e desço pelos lençois, cobertor e edredon. Apalpo o travesseiro, as plumas de ganso se agrupam e a constante presença de uma mão passa pela minha cabeça quase sem cabelos. Aninhada, em paz, não há memória para visitantes inoportunos, apenas sensações. “A minha carequinha”, ele diz.

28-julho – Poucas foram as intercorrências. Com  procedimento da retirada da vesícula foram duas semanas sem as sessões de quimio, e  outras duas semanas com resfriado, que não atrapalharam as idas ao departamento de oncologia. Se tinha medo das picadas de agulha, dos remédios entrando no corpo, eles já não causam qualquer surpresa e são enfrentados virtuosamente, porque se aprende desde a primeira sessão que não adianta fazer beiço, cara de choro, de sofrimento. É pior, a veia estoura, e aí a a mulher de branco ameaça, vai doer mais porque a busca não cessa, mais uma espetada aqui e mais outra saltada, ou mais profunda. Dá para ouvir o som da agulha entrando na pele e só depois de um tempo que parece infinito, agulha e veia se encontram, fazem a a sua composição utilitária. Impiedosas todas elas.

10/10/2017 -     Para o nosso mundo, para realidade que conhecemos, é necessário o tempo, o cronos, a flecha do tempo linear, mas o inconsciente ignora o tempo. Diz isso Spinoza, a física quântica, o ativista quântico Goswami. Um salto para a não localidade, a intuição, buscar no inconsciente os Arquétipos atemporais e descobrir propósitos. E onde vivem os arquétipos? Fora do tempo e do espaço, na não localidade, onde é possível a comunicação sem sinal, instantânea. E isto parece ser místico porque transcende o tempo e o espaço da realidade material e a sua relatividade. Aqui no espaço tempo parece que tudo está separado, precisamos de sinais para a comunicação, dos dedos no teclado, do telefone, da voz, materialidades infinitas. Mas o digital só foi possível no campo quântico, diz Goswami. Difícil abstrair e sair da física mecânica, dos tubos de infusão, de todas as nossas vivências cotidianas. Mas há algo que não é matéria, vaga na não localidade. Potencialidades infinitas de transformação.