segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Temores e tremores culturais - Os gestos nas olimpíadas de Pequim

As oposições de vitória e derrota expressas nos gestos dos atletas nas olimpíadas já foram estudas por cientistas, conforme artigo do biólogo Fernando Reinach,* e os resultados evidenciam que as posturas corporais desses dois contrários são procedimentos inatos, biológicos, não aprendidos pela cultura. Nos gestos dos vitoriosos os movimentos se repetem: os braços são levantados, os peitos se estufam com a cabeça para trás, e os punhos se fecham. Nas derrotas, os gestos são de encolhimento do corpo, olhar para baixo, os braços se largam e os ombros se encurvam. Segundo o mesmo artigo, são gestos estereotipados encontrados também em macacos, mesmo naqueles criados sem contato com a mesma espécie, sendo portanto, reações provenientes de herança genética.
Mas e o que dizer sobre temores e tremores na finalização da performance de cada atleta brasileiro nas olimpíadas? É inegável a competência dos atletas, a maioria disputando em condições físicas semelhantes - excetuando-se raridades como o nadador norte-americano Michael Phelps e Usain Bolt da Jamaica - portanto as medalhas não justificam apenas graus de competência, mas de algo que faltou à maioria de nossos atletas. Para citar apenas um exemplo, não podemos esquecer o brasileiro Diego Hypólito, que treinou rigorosamente durante quatro anos, era o grande favorito na ginástica artística e, no entanto, no momento da transformação, a performance não foi alcançada, a inglória derrota de cair no momento decisivo.
A falta de preparo psicológico é uma questão individual ou cultural? Temores e tremores fazem parte da herança genética do sapiens, são fruto das emoções, mas a sua constância e repetição observados nas olimpíadas sugerem uma subcultura do medo do sucesso projetada na equipe de atletas como um traço peculiar negativo e característico do país, como um preconceito de si mesmo, de suas raízes, de pertencer a um país pouco levado a sério. Ou estariam também nossas crianças crescendo sem vínculo e afeto familiares, alicerces para a formação do guerreiro de Castaneda, do amadurecimento, da auto-estima e controle das emoções no enfrentamento de conflitos e decisões?
Do sucesso dos chineses nas olimpíadas não há que se retirar exemplos, transformaram-se em signos ideológicos do estado, depois de alguns anos em cativeiro.

*Reinach, Fernando. “As olimpíadas revelam nosso lado animal”. In: Jornal “O Estado de São Paulo”, 21 de agosto de 2008. Mais informações: The spontaneous expression of pride and shame: Evidence from biological innate nonverbal displays. Proceedings of the Nat. Academy os Sciences, v. 105, p.33,2008

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Gestos da cosmética

O gesto de barbear é o gesto do racionalismo formalista, um gesto clássico, não romântico e anti-revolucionário. Naturalmente, não se pode dizer que quem se barbeia é um fascista; porém cabe dizer que quem é fascista jamais terá uma barba cerrada. Vilém Flusser


Com ritmos cadenciados girando em volta de si mesma e um outro maior, o elíptico, reverenciando a sua existência, a consciência terra produz movimentos para além dos seus gestos biofísicos... Como que incorporando a cultura dos gestos humanos de domínio e exploração, o planeta, transformado em quarto de despejo, também já emite os seus movimentos adquiridos por essa cultura. São movimentos imprevisíveis, alguns furiosos das quedas das geleiras, outros silenciosos e pesados aquecendo a atmosfera.
Mas apenas constatar e observar esse ciclo passa a ser um gesto ecológico, pós-histórico, como a crise que se afigura da existência da própria história da devastação, diz Flusser (1994). Ao analisar as semelhanças dos gestos do jardineiro, do barbeiro e do contemplativo ecologista1, considera que o jardineiro apara o jardim para transformá-lo numa geométrica beleza artificial, como o ecologista, o vigilante da natureza quer replantar árvores nas regiões desmatadas, sem no entanto reverter o ciclo da destruição da biodiversidade, porque a história do homem se confunde com o gesto da posse e domínio da terra, e isto significa que é chegado o momento (talvez tardio) do homem modificar a sua própria história; e o barbeiro ao fazer a barba elimina vestígios dos pêlos, usa os mesmos utensílios miniaturizados do jardineiro, um gesto que não tem o propósito nem de criar cultura, nem de salvar a natureza para o homem, senão acentuar e ampliar as fronteiras entre o homem e o mundo. Segundo Flusser, seriam gestos artificiais, cosméticos e superficiais porque esses gestos são externos à natureza.
Sob esse ponto de vista, observando-se mais detidamente a cidade de Paris, encontramos ali os gestos do zeloso e anônimo jardineiro, que minuciosamente poda, formata e conserva toda a vegetação existente, adquirindo uma paisagem singular. Com sua construção arquitetônica com imponentes monumentos, que não nos fazem esquecer os séculos de cultura, e os seus geométricos jardins, sem os resíduos naturais de ervas e matos, o cenário da cidade serve aos viajantes. Paris assemelha-se a um mausoléu recém limpo, a um cemitério com suas quadras, túmulos e árvores, todos produzindo um distanciamento entre o mundo e o homem? Não é ali, um dos centros da cultura ocidental, onde podemos pressentir homens e angústia da existência pairando naquela atmosfera de luzes artificiais? E no seu subterrâneo, no maior conglomerado de trilhos, trens, lixo, odor de fezes, publicidade, resta eficiência nos horários e velocidade para alcançar e cruzar as quadras desse gigante cemitério. E nos vagões, a sensação de que os gestos da apatia e da descrença quase não se movimentam em oposição aos do entusiasmo do viajante. Para diminuir a extensão dos desencontros, o parisiense se apinha nos cafés.

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1 Note-se que em 1991, data da primeira edição de seu livro em alemão “Gesten. Verernuch einer Phänomenologie”, Vilém Flusser observa os gestos do então moderno ecologista, associando-o ao passivo vigilante da natureza destinado a produzir frases de efeito.