segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Gestos da cosmética

O gesto de barbear é o gesto do racionalismo formalista, um gesto clássico, não romântico e anti-revolucionário. Naturalmente, não se pode dizer que quem se barbeia é um fascista; porém cabe dizer que quem é fascista jamais terá uma barba cerrada. Vilém Flusser


Com ritmos cadenciados girando em volta de si mesma e um outro maior, o elíptico, reverenciando a sua existência, a consciência terra produz movimentos para além dos seus gestos biofísicos... Como que incorporando a cultura dos gestos humanos de domínio e exploração, o planeta, transformado em quarto de despejo, também já emite os seus movimentos adquiridos por essa cultura. São movimentos imprevisíveis, alguns furiosos das quedas das geleiras, outros silenciosos e pesados aquecendo a atmosfera.
Mas apenas constatar e observar esse ciclo passa a ser um gesto ecológico, pós-histórico, como a crise que se afigura da existência da própria história da devastação, diz Flusser (1994). Ao analisar as semelhanças dos gestos do jardineiro, do barbeiro e do contemplativo ecologista1, considera que o jardineiro apara o jardim para transformá-lo numa geométrica beleza artificial, como o ecologista, o vigilante da natureza quer replantar árvores nas regiões desmatadas, sem no entanto reverter o ciclo da destruição da biodiversidade, porque a história do homem se confunde com o gesto da posse e domínio da terra, e isto significa que é chegado o momento (talvez tardio) do homem modificar a sua própria história; e o barbeiro ao fazer a barba elimina vestígios dos pêlos, usa os mesmos utensílios miniaturizados do jardineiro, um gesto que não tem o propósito nem de criar cultura, nem de salvar a natureza para o homem, senão acentuar e ampliar as fronteiras entre o homem e o mundo. Segundo Flusser, seriam gestos artificiais, cosméticos e superficiais porque esses gestos são externos à natureza.
Sob esse ponto de vista, observando-se mais detidamente a cidade de Paris, encontramos ali os gestos do zeloso e anônimo jardineiro, que minuciosamente poda, formata e conserva toda a vegetação existente, adquirindo uma paisagem singular. Com sua construção arquitetônica com imponentes monumentos, que não nos fazem esquecer os séculos de cultura, e os seus geométricos jardins, sem os resíduos naturais de ervas e matos, o cenário da cidade serve aos viajantes. Paris assemelha-se a um mausoléu recém limpo, a um cemitério com suas quadras, túmulos e árvores, todos produzindo um distanciamento entre o mundo e o homem? Não é ali, um dos centros da cultura ocidental, onde podemos pressentir homens e angústia da existência pairando naquela atmosfera de luzes artificiais? E no seu subterrâneo, no maior conglomerado de trilhos, trens, lixo, odor de fezes, publicidade, resta eficiência nos horários e velocidade para alcançar e cruzar as quadras desse gigante cemitério. E nos vagões, a sensação de que os gestos da apatia e da descrença quase não se movimentam em oposição aos do entusiasmo do viajante. Para diminuir a extensão dos desencontros, o parisiense se apinha nos cafés.

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1 Note-se que em 1991, data da primeira edição de seu livro em alemão “Gesten. Verernuch einer Phänomenologie”, Vilém Flusser observa os gestos do então moderno ecologista, associando-o ao passivo vigilante da natureza destinado a produzir frases de efeito.

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