quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Entrevista: Cleide Campelo e a Semiótica do Corpo

Autora do livro “Caleidoscorpos”, editado em 1997, Cleide Campelo é mestre e doutora em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, com tese de doutorado em 2001, com o tema: “Sonhos do Corpo: A Comunicação Biocultural do Corpo”. Mestre há 8 anos no curso “Comunicação e Artes do Corpo” nas disciplinas Semiótica da Cultura, Comunicação Corporal; As Mãos e o Corpo: Os Olhos e o Corpo; Artes no Corpo e “A Palavra e o Corpo” na PUCSP. É pesquisadora na área de Comunicação, Semiótica da Cultura, Performance e Comunicação Corporal, além de participar de inúmeras oficinas de preparação para atores, bailarinos e performers em Comunicação Corporal.
Em 18 de março de 2007, a semioticista Campelo concedeu a seguinte entrevista:

1. Semiótica da Cultura e da Mídia ou Semiótica Peirceana ? Há necessidade de se fazer uma escolha entre as duas teorias como objeto de estudo?
R. Todo pensamento é um recorte; como uma escultura, é um pedaço retirado de um grande bloco de pedra. Muitas vezes o que revelamos dos nossos pensamentos, de nossas teorias, é uma pequena ponta do iceberg que ali jaz escondido.
Quando comecei o Mestrado em Comunicação e Semiótica na PUCSP, em agosto de 1988, o tempo e o próprio curso eram muito diferentes: tínhamos então 7 anos para realizar o Mestrado (lembre-se de que hoje em dia são apenas 2 anos!) e começávamos o curso ainda sem precisar definir um objeto de estudo. A partir das primeiras disciplinas cursadas é que percebíamos um objeto de estudo a nos escolher, a tomar corpo dentro da gente, como numa gestação mesmo. Assim, uma das duas disciplinas que eu cursei no primeiro semestre foi Semiótica Geral, com a profa. dra. Lúcia Santaella, a grande especialista em Charles Sanders Peirce. Assim, comecei conhecendo Peirce antes da Semiótica da Cultura, e o estudei muito, durante os três primeiros anos do curso. Quando cursei depois Semiótica da Cultura com o prof. dr. Norval Baitello Jr., que veio a ser meu orientador do Mestrado e do Doutorado, percebi a grande afinidade deste campo do pensamento com as questões do corpo que eu começava a trabalhar. Assim, abandonei a teoria peirceana, no momento em que, para o que eu vinha estudando, ela tornou-se um tanto tautológica; e segui pesquisando dentro dos caminhos dos teóricos da Semiótica da Cultura. Continuo achando Peirce um teórico fabuloso; e sua teoria é um presente à humanidade em forma de um arcabouço filosófico.
Agora, quando você torna-se um pesquisador, é importante encontrar os caminhos que facilitem e instiguem o seu próprio pensamento; é importante escolher dentro dessa seara imensa que é a de todos os pensadores de todos os tempos, aqueles que possam vir a dialogar melhor com o seu pensamento, articulando com eles uma conversa criativa e inovadora. São estes que vão aparecer no corpo da sua pesquisa; não quer dizer que você exclua todos os outros que ali não aparecem explicitamente.

2. A teoria do corpo já é uma realidade concreta? Quais são os principais autores sobre a teoria do corpo hoje, depois de 10 anos da sua obra “Caleidoscorpos”.
R. A Semiótica do Corpo é, sim, uma realidade concreta. Há muitos pesquisadores em todo o mundo voltados para esta questão. No Brasil, desde os anos 60 temos o trabalho pioneiro de José Ângelo Gaiarsa e Roberto Freire, dois médicos e psicoterapeutas corporais, que têm livros escritos nesta área, nossos grandes alicerces. Hoje temos uma lista imensa de autores brasileiros e estrangeiros na confecção deste mapa. Você pode também consultar minha tese de doutorado na Biblioteca da PUC: há uma lista boa lá.

3. Quais são as novas diretrizes na área da Semiótica do Corpo?
R. Participo do CISC (Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia) na área da Semiótica do Corpo; e dou aulas na graduação da PUC, no curso Comunicação e Artes do Corpo, curso este nascido diretamente da inspiração do prof. dr. Norval Baitello Jr. e sua escola de Semiótica da Cultura, de que faço parte.

4. Para que haja interligação entre as neurociências, especialmente sobre o construto da consciência (em destaque as obras de A. Damásio) todas as linhas da semiótica deveriam ser revistas?
R. A teoria de Damásio está em total consonância com todas as teorias da Biologia, da Física, da Química, da Neurologia, da Filosofia, da Psicanálise, da Etologia, que são as bases de onde a Semiótica da Cultura parte para levantar seu pensamento sobre a questão da consciência. A obra de Damásio é mais uma contribuição importante nesta área, mas não exige nenhuma revisão de “todas as linhas semióticas”, como você colocou. É mais uma ramificação de tudo o que foi pensado no século XX e que forma o grande corpo do pensamento sobre o homem, que ainda estamos elaborando nos dias de hoje.

5. No último livro, À busca de Espinosa", Damásio afirma que mente e cérebro estão a serviço do corpo. Você se arriscaria a essa mesma conclusão?
R. Acho que esta separação mente X corpo, cérebro X corpo, corpo X espírito já está superada. Tudo é corpo. Quando leio Damásio vejo que ele pensa também assim, ainda que em outros momentos fale mesmo de mente, de cérebro, de corpo: acho que são estratégias didáticas ao escrever.
Somos um corpomente, que historicamente fomos separando, pois razões diversas: políticas, religiosas, fiosóficas. Hoje, no Ocidente, estamos nos rejuntando. No oriente, eles já vivem este holismo há milhares de anos.

6. Com relação ao homem X máquina, passamos a ser unidimensionais como aponta Baitello no livro "A Iconofagia". Paradoxos da cultura: enquanto o corpo na mídia antiga, realçado e banalizado pelo excesso, temos a cibercultura transformando o corpo num único ponto. Chega-se a um equilíbrio, à adaptação, ou estamos em crise?
R. Nossa cultura ocidental, sob a influência da cultura dos Estados Unidos (como é muito o nosso caso no Brasil), vive esta fragmentação do corpo: negado por uma ideologia religiosa que exclui o presente, o prazer, e o animal do corpo; por uma cultura da voracidade e da velocidade, que prega cada vez mais coisas a serem tragadas num tempo cada vez menor; por uma ideologia da aparência e do acúmulo, que acaba gerando nossa obesidade social, biológica, ideológica, traduzindo-se em nossa cada vez mais estreita territorialização, infindáveis dietas, e intermináveis guerras. São nossos conflitos não resolvidos que projetamos fora.
Na cibercultura, o ponto-corpo expande-se e vejo-a como uma saída para os conflitos do nosso tempo. Como um ponto, voltamos a ser pó de estrela, só que desta vez virtual, e talvez consigamos recomeçar um sonho novo para o corpo. A unidimensionalidade na tela pode dar ao corpo a chance de ser tragado para dentro do buraco negro/buraco branco, e ao dar um novo “play”, a gente pode voltar a sentir o sangue correr nas veias, as faces corarem, os pés encontrarem a lama, os braços brincarem na chuva.

7. O corpo é mídia, conforme a definição de Harry Pross. Esse conceito é útil na comunicação, mas e o estar consigo mesmo?
R. O conceito de Pross do corpo como mídia serve também para as questões do “estar consigo mesmo”, como você colocou. Teríamos que retomar as questões da Psicanálise e trançar com as reflexões semióticas para percebermos questões como: “Com quem estou quando estou comigo mesma?”; “O que comunico quando estou sozinha?”; “É possível não comunicar?”.

8. A Ipaz, Agência Internacional pela Paz*, está promovendo durante este ano encontros mensais com jornalistas e profissionais da área, com o objetivo de discutir o processo de responsabilidade social e consciência na produção de conteúdos da Mídia. Um dos temas abordados: Mídia: Espelho de Mim? Uma pergunta difícil.... é possível você dar a sua opinião?
R. “Mídia: Espelho de Mim?” . Mídia é uma palavra plural: são muitos os meios. Para pensar em mídia como “espelho de mim”, temos que fragmentar o “mim” também em milhares de pedaços. Pensando, então em “mim” como uma palavra muito plural, cheia de possibilidades e potencialidades, os meios serão sempre espelhos de alguns “mins”, “eus” que se reconhecerão e se farão representar por algum meio.

9. Você concorda com a definição do pós-humano? Ou nunca seremos pós-humanos?!
R. Definição de que autor? Há diferentes definições por autores diferentes, e a gente precisa saber o que estamos definindo. É como falar sobre o “tempo” na Física – depende de que teórico você se refere, a definição poderá ser uma coisa ou outra.
Os autores muitas vezes criam conceitos para explicar mais didaticamente o que querem dizer; muitas vezes alguns termos ficam mais importantes do que toda uma reflexão de determinado autor.
Pessoalmente, acho que somos mamíferos-primatas. Humanos já é uma metáfora, um apelido de família, digamos.

10. A física quântica já faz parte das pesquisas do corpo?
R. Para estudar o corpo temos que estudar Biologia, Fisiologia, Neurologia, Psicologia, Química, Física, História, Etologia, Semiótica, Artes. Em que dose você vai precisar de cada campo do conhecimento, vai depender do seu objeto de estudo e das questões que o pesquisador está interessado em levantar.




*A IPAZ promove a comunicação e a mobilização para a paz. Ver mais: www.ipaz.org

quinta-feira, 23 de agosto de 2007

A PRESA OU OS GESTOS DO DESPREZO


Traçando o seu destino, a presa aguarda ser pega ali dentro, embrulhada naqueles tecidos de cores italianas do xadrez dos guardanapos das cantinas. Seus pés podem ter ficado para fora, um fio de cabelo pode tê-la traído. Mas não, João Pedro cheira e ouve animal. Ele não a vê, mas a sente presente. Com as unhas, instintivamente levanta o guardanapo, tira os panos encharcados do calor do corpo, e vagarosamente a desnuda em cima da mesa. A pele se eriça, os pelos levantam, formam-se grãos de areia, texturas infinitas vão surgindo ao contato das garras.
João Pedro já tinha sentido o cheiro da presa provocado pelas gotas que saíam daquele corpo traído. Ele reconhece seus instintos. São afiados e mortais quando a noite cai: fica faminto, o pulso acelera, a respiração é profunda e ofegante. Um abandono aos instintos, troca de identidade, uma corredeira no curso normal das águas. Vibrações conhecidas. Dor e prazer e a transformação se avizinhando, se libertando. Então ele fica animal. Cheira animal. Ouve animal. É fácil encontrar a presa. Ela transpira, exala o odor do medo, e aos poucos vai perdendo suas forças, folha caída, sem destino, deslizando ao sabor do vento. Entrega-se ao seu destino.
Mesmo fraco, o corpo retoma a esperança, dá sinais de vida, estremece à proximidade do caçador, e percebe o seu abrigo falho, fácil de ser desvendado. Pigmaleoa, deixa para trás a primeira pele, quer sedar, envenenar para a urgente fuga. Ele troça da sua fraqueza e ingenuidade. Mais do que abatê-la ele quer sodomizá-la. Provocar o prazer da dor. Sente-se embriagado, sem freios com as suas frágeis e perfumadas escamas da presa. Com a língua viscosa e faminta, lambe-lhe a terceira pele tatuada e o bico dos seus seios inflam e endurecem com um arrepio... É o início do êxtase. Não menos que lobo, a proximidade quase chega a um gozo. Máscaras caem e outra se sucede. Um corpo sem limites.
Completamente à mercê, a pigmaleoa se deixa levar pelos intermináveis e grossos lambidos da fera. Exausta, ela aguarda...., Sem motivo aparente ele a vê sem enxergar, veste uma outra pele, uma gélida e distante roupagem. Com o gesto do desprezo, o homem, não mais fera, a abandona desnuda ali mesmo em cima do xadrez do pano da mesa.
Incrédula.

RESILIÊNCIA E TRAUMA

Um dos mais graves traumas que uma criança pode sofrer na primeira infância é a negligência afetiva, os maus tratos, o abandono e a falta de vínculos familiares ou seus substitutos, adquirindo distúrbios duradouros da emoção. Essa é a afirmação do neuropsiquiatra, psicanalista e etólogo francês Boris Cyrulnik, conferencista convidado no I Seminário sobre Resiliência e Trauma, em março deste ano, promovido pela Sociedade de Psicanálise Brasileira, CEINP e Instituto Rukha, com apresentação do Projeto Virada Social, objetivando transformar crianças de rua em donas de seu próprio destino.
Com a cifra alarmante de 120 milhões de crianças de rua no mundo, segundo dados da UNICEF, e a atrofia e encolhimento de lares com pais e mães cada vez mais ausentes e imersos em seus trabalhos, Cyrulnik acredita que há um crescimento mundial de crianças traumatizadas pela falta de afeto, que se tornam adultos despreparados, frágeis o suficiente para não desenvolverem relacionamentos sociais e ou atividades profissionais, muitas vezes ingressando no submundo das drogas e do crime, acrescentando que na América Latina violência e delinqüência entre os jovens não é uma opção de vida, mas sobrevivência.
Segundo o etólogo, a falta de afeto na idade pré-verbal é um dos entraves para uma pessoa se tornar resiliente. Ao contrário do que se pensa, as crianças têm memória sobre experiências que as fizeram sair da rotina, e que antes do advento da fala, alojam-se no seu mundo íntimo. Lembranças de maus tratos, abandono e falta de afeto são ocorrências que não se apagam nessa fase de desenvolvimento, podendo provocar modificações cerebrais, como o atrofiamento do sistema límbico, tornando-as confusas e sem controle emocional.
Trazendo narrativas e histórias de seus pacientes, bem como de andanças em missões na Bósnia e Camboja, Cyrulnik descreve essas crianças negligenciadas pela falta de afeto como constantemente sobressaltadas e amedrontadas frente a eventuais novidades, exprimindo desespero descontrolado de qualquer separação. As agressões recebidas na primeira infância são as que modelam a criança de forma mais traumatizante, porque inexiste a ferramenta da fala para fazer as representações e confidências. Ao se detestar uma criança há um envelope de significantes que é perceptível sensorialmente a ela, são esses os fantasmas que recepciona no seu mundo íntimo, diz Cyrulnik. Nesse estágio, quando existe a possibilidade da intervenção da terapia, deve haver uma remodelação do ambiente em que a criança habita, havendo casos em que há necessidade de filmar o cotidiano para que pais ou cuidadores conscientizem-se de seus gestos de desamor.
No entanto, crianças protegidas por vínculos afetivos nos seus primeiros anos de vida estariam mais propensas à resiliência, um conceito contemporâneo em construção para designar a capacidade singular de superar traumas psíquicos e as mais graves feridas emocionais. Mas a melhor definição de resiliência para Cyrulnik é: “A arte de navegar nas torrentes”, lembrando que resiliência faz parte de um processo relacional, entre mundo íntimo e mundo aparente, onde cada indivíduo recepciona de forma subjetiva um golpe, podendo ou não transformá-lo num transtorno patogênico duradouro.
Cyrulnik considera muito valiosos todos os recursos, métodos e técnicas terapêuticas utilizados atualmente no tratamento dos traumas (embora particularmente não goste muito da técnica de “regressão”), lembrando que falar com alguém faz parte da resiliência, é aprender a remanejar o afeto, quando a estrutura semântica do discurso funciona como construímos o nosso mundo psíquico. Mas a abordagem no tratamento, segundo suas experiências, deve ser pluridisciplinar, uma equipe de investigação que reúna áreas como psicanálise, lingüística e neurobiologia, por exemplo, que aplicadas conjuntamente no processo terapêutico trazem resultados surpreendentemente positivos na superação de traumas que mulheres, homens, crianças, estão expostos no mundo de hoje. Sem esquecer que socialmente os vínculos familiares e institucionais, como possíveis tutores, vizinhos, professores podem ajudar na produção da resiliência. Às vezes, um pequeno sopro pode dar sentido à existência do traumatizado, fazendo-o retornar ao convívio social.
Nascido em Bourdeaux, em 1937, Boris Cyrulnik abriu o campo de pesquisa na França à Etologia, ciência que estuda o comportamento tanto dos animais como dos homens, além de ser reconhecido por desenvolver o conceito de resiliência. Atualmente é responsável pelo grupo de pesquisa em Etologia Clínica no Hospital de Toulon, e professor de Etologia Humana na “Université du Sud-Toulon-Var”. Possui cerca de duzentos artigos publicados sobre o assunto e é autor de 28 livros, entre eles alguns traduzidos para o português, como “Murmúrio dos Fantasmas”, “Patinhos Feitos” e “Resiliência”.




Resiliência é um conceito contemporâneo em construção para designar a capacidade subjetiva de superação de traumas, como uma metáfora retirada da física, onde os corpos, com propriedade elástica, retornam ao estado natural quando cessa a tensão causadora da deformação.


CYRULNIK, Boris. Murmúrio dos Fantasmas. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
“Resiliência e Trauma”. In: I Seminário de Boris Cyrulnik no Brasil, realizado na sede da SBP-SP, Av. Dr. Cardoso de Melo, Vila Olímpia, 1450. Promoção: SBP-SP, CEINP e Insituto Rukha.
Biografia. In: Consulado da França em São Paulo.
CEINP – Centro de Estudos e Investigação em Neuro-psicanálise