Resumo:
Este trabalho
faz um breve relato sobre o novo paradigma da contemporaneidade denominado pelo espanhol Josep Catalá de
cultura visual. A partir de seus estudos sobre imagens, Catalá considera que há
um desenvolvimento epistêmico em que
a conexão múltipla entre realidade, olhar e representação formam um ecologia propícia à produção de
fenômenos ou imagens complexas. Sob a perspectiva da proposta do autor, este trabalho elege e descreve três cenas
filmicas de “Fale com Ela”, ano de 2002, obra cinematográfica de Pedro Almodóvar,
para investigar a ocorrência de imagens complexas. Entre as cenas escolhidas há
duas performances coreografadas pela bailarina Pina Bausch e uma tourada
espanhola, elementos paradigmáticos que remetem a rituais e labirintos da
Antiguidade.
Palavras chave: imagens complexas – cultura visual – rituais –
labirintos
O olhar, a realidade e a representação
Ao escrever “As seis
propostas para o milênio” na década de 80, Ítalo Calvino já pontuava a
velocidade ligada aos avanços tecnológicos e a “chuva ininterrupta” das
imagens como riscos que poderiam
reduzir toda comunicação “a uma crosta uniforme e homogênea” provocada pelos mass media. Dentre as qualidades do que
se deveria trazer para este milênio na produção de poéticas (literária,
figurativa, musical) estaria segundo Calvino, a visibilidade, não aquela que
corresponde na atualidade aos desdobramentos da máxima do filósofo irlandês George Berkeley (1685/1753)
do “ser é ser percebido”, mas sim a visibilidade relacionada ao imagético como
elemento indispensável para a criação artística, uma vez que o pensamento é
feito da associação de imagens permitindo a rapidez mental para a apreensão dos
significados antes da linguagem, conforme o autor. Se por um lado a velocidade
é inerente aos avanços técnicos e a cultura já não pode mais prescindir deles,
Calvino alertava sobre os riscos da perda da capacidade do imaginário, da
memória visual interna pela avalanche de imagens que sufocariam esse mesmo
imagético interior, a necessidade que deveria caracterizar toda imagem como
forma de impor-se ao foco e à atenção, com riqueza de significados possíveis.
Do alerta, Calvino passa a propor uma pedagogia da visão: A primeira delas
seria mudar-lhes o sentido, isto é reciclar as imagens usadas adicionando-as em
novos contextos, e a segunda seria uma proposta radical: apagar todas essas
imagens e recomeçar do zero (CALVINO, 1995 :73,111).
Na atualidade, segundo o
pensador espanhol Josep Catalá, deve-se recomeçar do zero quando se pensa numa
nova epistemologia das imagens. Segundo o autor houve um século inteiro para a
transição da cultura da imagem pura e simples para a imagem visual, sem, no
entanto, nos darmos conta conscientemente desse novo processo de modelo. Deve-se
portanto esquecer a forma negativa e apocalíptica de como a “era das imagens”
têm sido conceituada e denominada de sociedade do espetáculo desde a década de
50 tanto por Heidegger quanto por Guy Debord e outros pensadores que os
seguiram, conceitos esses que são inadequados e datados porque pertencem a uma
fase anterior a este novo paradigma denominado por ele de cultura visual, de
acordo com o autor.
Diz Catalá, em sua obra “La
imagen compleja”, que a era da imagem está ligada conceitualmente ao modelo
linear e sintagmático na construção do texto lingüístico; quando ainda se pensava
na tríade “emissor-código-receptor” como todo processo comunicativo em que o
espectador absorvia um simulacro temporal expressado através da linearidade sem
retorno desse movimento incluindo a imagem. A imagem na nova acepção da cultura
visual proposta pelo pensador, já não se permite mais ser um simples acessório
do texto, mas uma imagem trabalhada que ele denomina de complexa. A imagem
isolada na recente atualidade já não existe, mas imagens sempre no plural, como
um conglomerado englobando uma ecologia, uma multiplicidade do visível (CATALÁ,
2005:43).
Ao se referir à
multiplicidade como um dos elementos para este milênio, Ítalo Calvino, de igual
forma relaciona o termo a um emaranhado complexo, uma simultaneidade de
elementos heterogêneos que concorrem para a determinação de cada evento. O
múltiplo é esse conjunto de rede de conexões das coisas do mundo, dos eventos e
das pessoas diz Catalá ao citar a definição de Calvino. Para a compreensão da
incomunicabilidade entre as imagens, Catalá fornece o exemplo de um passado
recente em que uma obra de arte era sempre apreciada de forma isolada das
demais, assim como quando se tomava um livro com imagens não estavam
relacionadas entre si, nem por aqueles que as produziam, e nem por aqueles que
as recepcionavam. (CATALÁ, 2005).
Sintetizando, para entender a
transição do isolamento para a multiplicidade, o teórico da cultura visual recupera
entre outros, os termos “entre-captura”
e estruturas dissipativas,
que fornecem as noções da complexidade sob a perspectiva da ecologia, onde
podem ocorrer dentro dos sistemas desdobramentos imprevisíveis ou o
imponderável como uma nova estética, um evento singular, termos estes que
expressam e criam na contemporaneidade as condições propícias para a
representação do complexo, conforme descrição do autor:
...La entre-captura se refiere tanto a la relación entre o todo y las partes como a la de éstas entre
si, dando cuenta del hecho de que lo importante no est tanto el que el fenômeno
sea múltiple, sino que esta multiplicidad transforme sin cesar a cada elemento
que lo compone, así como al conjunto que forman todos ellos. Em cuanto a la idea de
estructura dissipativa, ésta nos enfrenta com la energia que impulsa al grupo
múltiple y que lo convierte em um incesante proceso, lo que constituye uma
muestra de desequilíbrio positivo, propulsor: pretende gestionar la relación
fundamental entre cambio y estabilidad. (CATALÁ, 2005:61)
O
resultado dessas representações, isto é, da entre-captura e das estruturas
dissipativas, contém aquilo que o autor considera as características do
conceito da estética da arquitetura neobarroca,
diferindo totalmente dos elementos neoclássicos do passado recente. É nesse
pósmodernismo de estética com características marcadamente neobarrocas que a
imagem complexa deve se situar, conforme o mesmo autor. (CATALÁ,
2005:60).
Assim
como Ítalo Calvino defende uma pedagogia do olhar, o teórico da cultura visual
considera que a imagem do século deve ser didática para a “saúde da sociedade”,
acrescentando que não é somente necessário que as imagens tenham uma composição
complexa, mas que um olhar complexo se volte a elas. A conexão múltipla entre a
realidade, o olhar e a representação “forman así una determinada ecología que
produce fenómenos incontrovertiblemente complejos” (CATALÁ, 2005:66).
Imagens complexas
Catalá observa que essas imagens complexas não são
mais a superfície do mundo como uma janela de representação do real, mas
elaboradas, como já se disse, didaticamente abrindo espaço para solucionar problemas,
abrir o leque de expressões que ampliam a cognição, uma vez que nem a
simplicidade de uma imagem, nem mesmo um texto são capazes de traduzir no todo
o mundo do real. Isto significa que uma imagem complexa poderia expressar racional
e esteticamente a complexidade do real, e se tornar verdadeiramente científica.
Em linhas gerais, as principais características de
uma imagem complexa, segundo o autor:
Opacidade – Enquanto as imagens
tradicionais são transparentes, representam superficialmente o mundo, a
opacidade de uma imagem pode ser construída como um mapa e que nos obrigam a
focalização nossa atenção para decifrar a sua representação. Uma imagem
transparente pode se tornar complexa quando se observa duas temporalidades, um
tempo do observador sobreposto a outro tempo que é o da própria imagem.
Positiva – A característica
positiva se contrapõe à imagem mimética, quer dizer que a imagem na cultura
visual deixa de ser reprodução simples do real para ser fundamentalmente
pedagógica e criativa. Uma imagem que proponha pontos de referência com a
realidade, sem no entanto recorrer ao realismo.
Reflexiva – Uma imagem reflexiva é
um projeto para o futuro, uma concorrência entre imagens tradicionais e as
novas tecnologias que devem cumprir a funcionalidade didática e estética,
podendo ser consideradas multimagens potencializadas digitalmente unindo-se aos
textos e sons. Ao passo que a ilustração como imagem funcional tinha apenas a
característica de reproduzir ou reforçar o que já vinha escrito num texto.
Interativa – A interatividade se
opõe à espetacularização. Neste caso a virtualidade é o elemento vital para a
compreensão da imagem interativa, o modelo mental da interface.
Visualidade pós-científica –
Este traço
de imagem complexa pretende reunir arte e ciência numa mesma imagem, uma vez
que a ciência nem sempre é capaz de mostrar determinados fenômenos,
enquanto a arte pode ser um
caminho de ampliação para o conhecimento. (CATALÁ, 2005: )
Embora a interface seja considerada como uma
ferramenta do futuro para fundamentar todo um imaginário complexo, conforme
Josep Catalá, o espetáculo cinematográfico ainda não perdeu sua força como um
dos espaços mentais mais importantes desse mesmo imaginário. A técnica do cinema é considerada adequada
para captar e representar fenômenos do tipo da multiplicidade, conforme o
próprio autor, levando-nos a investigar no Filme “Hable com Ella” de 2002, do
diretor Pedro Almodóvar a ocorrência de imagens complexas.
Cenas fílmicas
Se a estrutura do teatro
grego, conforme Catalá, foi o primeiro modelo do espaço mental do Ocidente, em
que o espectador contemplava em comunidade conservando sua individualidade com
o mecanismo de “identificação” aristotélica,
o filme originário da “câmara escura” da Renascença com sua perspectiva
monocular possibilita um maior grau de atenção, além de se considerar que o
cinema cria conexões múltiplas de empatias, pertencimentos e suas gradações,
como quem percebe um mundo se organizar diante de nós, conforme observa
Merleau-Ponty.
Por detrás de uma obra
fílmica há um tempo lento autoral de criação e produção que ao mesmo tempo
concorre para uma polissemia de sentidos complexos. Está-se numa sala escura,
diante de uma ampla tela com panorama de grande profundidade de campo para
recepcionar um mundo que se lança, um mundo construído com a multiplicidade dos
sentidos, no mais das vezes, filosoficamente para se deixar ver, refletir,
imaginar e criticar questões existências de vida e morte. Conforme Merleau-
Ponty, a recepção de um filme não é pensado mas “percebido”, uma obra de arte
lançada no mundo em que há um “deciframento tácito” de coexistir com a cena,
onde existe uma elaboração maior e mais condensada que o da vida real. Esta
realidade ficcional, essa memória recorrente ou abissal estaria ligada ao
imaginário mais profundo, ligada ao processo mental do homem, que na sua
passividade individualizada de foco e atenção recepciona um mundo particular,
um espaço tempo peculiar de estar no mundo. É a possibilidade, ainda conforme
Ponty, de admirar e fazer ver e perceber a existência “de um elo cósmico, entre
um eu e um próximo, entre o indivíduo e o universo”, assim como o italiano
Calvino pretende fazer uma apologia da literatura para o milênio como um ideal
a ser conquistado, uma obra da qual “fosse possível sair da limitação de um
único eu e permitisse entrar em outros eus semelhantes, e fazer falar o que não
tem palavra”. (CALVINO,
1995:138), (MERLEAU-PONTY, 1983:115,116,117).
Observa Ponty que o filósofo
e o cineasta concorrem no mesmo sentido de reflexão, uma vez que a filosofia
contemporânea não é feita de encadeamento de conceitos, mas na descrição da
“fusão da consciência com o universo, seu compromisso dentro de um corpo, sua
coexistência com as outras; e este assunto é cinematográfico por excelência.” (MERLEAU-PONTY,
1983:117). O filme “Fale com
Ela” tem esse comprometimento, o de lançar a sua poética filosófica de
ambivalência da vida e da morte, do feminino e do masculino, como
transformações de valores para encarar a existência. Para mudar a mimésis e o
tradicional da representação do drama, Pedro Almodóvar trabalha com a estética
do câmera-stylo,
como se reporta André Bazin ao cinema de autor onde o filme está além de uma
montagem que visa tão somente uma espetacularização ao tipo hollywodiano (BAZIN,1983:131). A proposta do cineasta Pedro
Almodóvar ao elaborar o seu enredo
dentro de uma narrativa clássica, do encadeamento dos acontecimentos interpõe
elementos paradigmáticos que reforçam a filosofia autoral para este milênio, coincidindo
com uma mudança de valores masculinos para os femininos. Se os protagonistas da
obra cinematográfica de Almodóvar são homens, estamos diante de homens que
carregam um alto grau de características da feminilidade como a sabedoria
intuitiva, a sensibilidade e o acolhimento. Numa de suas falas, a personagem Katerina
Bilova fala a Benigno sobre a produção coreográfica de seu novo espetáculo: “Da
morte vem a vida. Do feminino emerge o masculino. Da terra surge o
etéreo”.
O filme é uma narrativa contemporânea,
rodado em Madri. O enfermeiro Benigno Martin (Javier Câmara) vive em um
apartamento em frente a uma academia de balé comandada por Katerina Bilova
(Geraldine Chaplin) e acaba por se apaixonar por uma de suas alunas, a bailarina
Alicia Roncero (Leonor Watling). Alicia é atropelada e entra em coma profundo
vindo a ser hospitalizada no mesmo local de trabalho de Benigno. É Benigno quem
passa a cuidar de Alicia diariamente com banhos, corte de cabelo, unhas e
massagens durante quatro anos. O jornalista Marco Zuluaga (Dario Grandinetti) e
a toureira Lydia Gonzalez (Rosário Flores), carentes pelas suas perdas amorosas
iniciam um curto romance. Lydia, em uma de suas apresentações é atingida por um
touro e considerada clinicamente morta e internada no mesmo hospital onde está
Alicia. Benigno e Marco tornam-se grandes amigos num tempo de espera e de proteção
às duas “adormecidas”.
Como elementos paradigmáticos,
além das cenas de balé, são privilegiados, além do mais, a seleção de músicas
de Bach, Tom Jobim, a trilha sonora “Raquel” de Alberto Iglesias, e a presença
de Caetano Veloso interpretando Paloma, entre outros, compondo uma poética
sonora à narrativa. Destaca-se para
investigação ainda que não exaustivamente, apenas três desses modelos ligados
entre si e ao todo da obra fílmica, e que correspondem, segundo esta pesquisa, a
uma ressignificação de antigo ritual praticado no Antigo Egito.
Paolo Santarcangeli, em seu
livro “Los Labirintos”, conta que o drama da morte e renascimento do mito
Osíris era representado por três tipos de dança: a dança do Lamento, a dança da
Proteção e a dança da Fertilidade. Os elementos paradigmáticos eleitos para
este trabalho na obra fílmica surgem também nessa mesma ordem, no entanto a
dança da Proteção, “que era executada por homens armados, defensores do corpo
de Osíris”
no Antigo Egito, é substituída pela tauromaquia. A proteção e os cuidados são
dados por Marco e Benigno durante o desenrolar da obra.
Labirintos, danças e jogos
A vida dança qual uma cortina
de chamas, a morte enrijece; a inteligência dança, a burrice se fixa,
repetitiva; a intuição dança, a lógica e a memória programam os robôs, a
palavra dança quando nasce e desaba no estereótipo; o desejo dança, a
indiferença dorme.
Michel Serres
1. A dança do
lamento
Na abertura do filme “Fale
com Ela”, uma cortina vermelha se abre e no palco a encenação de uma parte do
espetáculo “Café Muller” de autoria da bailarina alemã Pina Bausch(1941-2009).
Duas mulheres de túnica branca, entre elas Pina Bausch, movimentam-se como
sonâmbulas numa dança de lamento, de profundo sofrimento. Um homem surge e
solidariza-se como pode com a dor das mulheres, retirando as várias cadeiras e
mesas do caminho na tentativa de atenuar-lhes o sofrimento. Marco e Benigno
estão sentados lado a lado na platéia e não se conhecem. Benigno flagra as
lágrimas de Marco. Na cena seguinte Benigno cuida de Alicia em coma, e mesmo
assim relata toda a cena vivida no espetáculo, inclusive de Marco, e ainda
mostra o seu troféu: uma foto de Pina Bausch e uma dedicatória: “Supere todos
os obstáculos e comece a dançar”. Conforme Santarcangelli, a dança do Lamento
era um culto à morte de Osíris que teria governado o Egito em época de grande
prosperidade e opulência, ensinando aos homens técnicas de civilização e
agricultura. No culto a Osíris consta que há a intervenção de alguns homens,
mas são as mulheres principalmente que dançam representando a dor de Isis,
esposa e irmã de Osíris, e Neftis, sua irmã (SANTARCANGELI,
2002:75).
2. A tauromaquia
Nesta cena não há passes de corrida
na tourada; Lydia está ajoelhada na Arena no compasso de espera do animal. Decidida
e abalada ainda com o antigo romance, prepara-se para o jogo da morte, está com
a capa em frente ao corpo, e com um gesto de cabeça firme e positivo, com
traços nitidamente masculinos, dá o sinal para enfrentar o animal. Ela aguarda
demais, numa fração de segundos tira a capa dupla face, preto e rosa-choque, da
frente do seu corpo mas é tarde demais, e o touro de cabeça baixa a assalta com
seus chifres. Diz Santarcangeli que no drama da morte e do renascimento de Osíris
havia ainda uma luta ritual em frente a um templo sagrado, e assim que o
representante do deus-rei chegava, ao invés de ser despedaçado pelos inimigos,
conforme o mito, matava-se um touro divino para preservar-lhe a vida. (SANTARCANGELI,
2002:75).
Os touros, sempre estiveram
presentes nas culturas antigas, ou como adoração ou como expiação dos pecados
do homem. A lenda do labirinto e do Minotauro talvez seja o relato mais popular
da Antiguidade perdurando há mais de 3 mil anos de acordo com Santarcangelli. O
Minotauro, metade animal, metade homem seria uma expressão do lado da sombra,
polaridade sexual, em que o iniciado deve aniquilar para alcançar a sabedoria,
a vitória do espírito sobre a matéria. “A victoria de Teseo sobre el Minotauro
es la vitória de Teseo sobre si mismo, el bautizo del hombre nuevo em la sangre
del Toro-hombre (M. Brion, apud Santarcangeli). A tauromaquia, ainda legalizada
na Espanha contemporânea, guarda a
figura arquetípica do Minotauro e lhe acrescenta talvez com mais vigor o êxtase e a vertigem relacionados à
erotização de acordo com o escritor e antropólogo Michel Leiris. Mais do que um
esporte, o escritor considera a tauromaquia como uma arte trágica, “lugar onde
o homem tangencia o mundo e a si mesmo”. Leiris fala sobre esse espaço, lugar
de um instante:
Um lugar
onde os acontecimentos, objetos, circunstâncias têm o poder, por um brevíssimo
instante, de trazer à superfície insipidamente uniforme em que habitualmente
deslizamos mundo afora alguns dos elementos que pertencem com mais direito à
nossa vida abissal, antes de deixar que retornem ... à obscuridade lodacenta
donde haviam emergido (LEIRIS, 2001: )
Conforme ainda sua descrição,
a possibilidade material de ferimento, da revelação e distensão desse confronto
entre um e outro, manifesta-se não apenas a idéia do sagrado, mas um analogia à
atividade erótica. Diz ele: “A corrida inteira, à maneira de um sacrifício,
tende ao paroxismo: a morte, depois da qual só pode produzir a distensão, como
depois da possessão do objeto desejado no amor, ou como depois da morte do
herói na tragédia”. O sacrifício é o momento máximo de tensão... quando há a
“conflagração do deus com o sangue da vítima, seguidos dos ritos de distensão:
dessacralização, afastamento do deus, que já recebeu sua parte...” (LEIRIS,
2001:60). Lydia, no entanto é a vítima, entra em coma vindo a falecer meses
depois.
3. A dança da
Fertilidade
No desfecho do filme “Fale
com Ela”, a personagem Marco está no teatro assistindo à performance “Fogo”, o
elemento da transmutação, e terminado o primeiro ato, no intervalo, troca
olhares com Alicia, já
restabelecida do coma, em companhia da bailarina Katerina Bilova. À parte,
Marco diz à Katerina que precisam conversar sobre o suicídio de Benigno, uma
simples conversa, mas nada é simples para uma bailarina, diz Katerina. A
performance recomeça, tendo ao fundo do palco uma pequena cascata ornada de
plantas, e os pares de homens e mulheres descalços vão surgindo da esquerda
para a direita, um a um perfilados tomando o espaço horizontal do palco, ao som
da música “Raquel”, trilha sonora de Alberto Iglesias. As mulheres, de costas,
com vestidos simples dançam com seus homens de chapéu num único e repetitivo passo
e ondular de quadris femininos, sempre à direita. Conforme nos
relata Santarcangeli, a dança da Fertilidade era executada por bailarinos de
ambos os sexos com a finalidade de ressuscitar o corpo de Osíris. A dança
representava ainda uma celebração de núpcias sagradas, da fertilidade, como as
ancas das bailarinas na cena fílmica de Almóvar, e que o espectador pode
relacionar com o filho nati-morto de Alicia, fruto da ação obsessiva de Benigno
para trazê-la de volta à vida. Na
platéia Marco busca o olhar de Alicia.
O risco de perder-se
Nos rituais de dança pela
morte e vida do Mito Osíris existe uma indiscutível presença de três elementos,
conforme nos relata Santarcangeli: a tumba, o labirinto e a dança (SANTARCANGELI,
2002:76). Diz ele que
qualquer estudo relacionado ao labirinto deveria inicialmente passar pela
dança, uma vez que de acordo com todos os documentos arqueológicos a dança e o
labirinto estão sempre conectados, além da tumba relacionada à tragédia,
guardada em caminhos sinuosos, labirínticos para não serem profanados,
aguardando a ressurreição eterna do corpo, quando não menos ao mistério. Rituais
de dança assim como os passes da tourada colocam ordem no caos, passos
labirínticos que servem como o fio de Ariadne, como diz Leiris. (LEIRIS,
2001: 42)
Investigando a cidade de
Creta, uma das ilhas do mediterrâneo, anterior à antiguidade greco-latina,
Santarcangeli relata que essa ilha teria tido o grande mérito de ensinar a vida
civilizada a todas as populações do Ocidente, isto é condições de fazer
intercâmbio de suas riquezas culturais em cem cidades descritas por Homero, com
a sua capital, denominada de Cnossos, lugar de Minos. O nome de Minos poderia
estar ligado a toda uma era denominada de minóica ou mesmo condensada ao redor
de uma única pessoa, ao mito de Minos. (SANTARCANGELI, 2002:83, 84).
Foi em Creta onde se situou a lenda de Dédalo que se atribuiu a construção
do palácio de Cnossos, o primeiro recinto das danças sagradas, local do
labirinto onde estaria escondido o Minotauro. Ao que parece, porque as
escavações ainda não terminaram, o famoso labirinto de Cnossos era uma
construção cheia de sinuosidades e meandros, aparecendo nas moedas cretenses e
designaria o próprio palácio, e em termos religiosos cretenses, segundo algumas
versões, o Labirinto seria o útero, Teseo o feto, e o fio de Ariadne, o cordão
umbilical, conforme Junito Brandão. (BRANDÃO, 1998: 56). Assim como Santarcangeli menciona que o
labirinto para determinados autores é a casa da Mãe Terra, um arquétipo, a Grande
Mãe Minóica, Junito Brandão fala da importância inquestionável do papel da mulher tanto na religiosidade como na
vida política de Creta: a mulher na ilha de Minos não governava, mas reinava,
diz ele. Fato é que tanto
Santarcangeli e Junito Brandão consideram que a lenda do labirinto, dos cultos
e suas danças teriam migrado para a Síria, Egito e Grécia, onde é possível
relacionar o mito de Osíris e suas danças originarias de Creta, vindo a dar
origem inclusive ao sincretismo cretense com o helênico: encontro do masculino
helênico com o feminino minóico. (BRANDÃO,1998: 70).
O labirinto é dança, jogo e
mistério colocando ordem na existência; é permitir que o mundo siga seu devido
curso obrigando a natureza a proteger o homem, diz Johan Huizinga. É o homo ludens operando o
jogo, um fato mais antigo que a própria cultura, ultrapassando as necessidades
biológicas porque embora haja sempre um “faz-de-conta”, as suas regras não
podem ser quebradas, são jogos repletos de significados. Nesse espírito de fantasia
e imaginário, há uma limitação no espaço, um terreno delimitado, mundo
temporário, isolado, fechado e sagrado onde se respeitam essas regras
invioláveis, sair do cotidiano para se jogar no extremo limite entre a
brincadeira e a seriedade (HUIZINGA, ). Mas pode-se desvendar essa imagem labiríntica, “trazer à
tona o que uma mente teria concebido”, como o fio de Ariadna, um primeiro tipo
de labirinto, o mais simples chamado de univiário por Umberto Eco ao introduzir
o prólogo no “Libro de los
laberintos” de Santarcangeli. Umberto Eco cita o arbóreo como o segundo
tipo de labirinto, mais complexo
que o anterior, necessitando de deciframentos maiores para não se perder, mas
há uma saída. O terceiro é o labirinto rizomático que tende ao infinito, nosso
mundo contemporâneo como as redes (ECO, 2002:15:16), ou mais precisamente, de
como somos tecidos. Mas na simples
complexidade univiária das imagens labirínticas propostas por Almodóvar não
faltam poéticas e muito a decifrar.
Artigo produzido em 2010, por ocasião de término de disciplina da docente Profa. Dra. Dulcilia H. S. Buitoni "Poéticas e estéticas contemporâneas", do programa de Mestrado da Cásper Líbero.
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A
interface, conforme Catalá: “tipo de imagem metafórica capaz de relacionar o
usuário com um conglomerado multimediático de índole informativa e didática”.