quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

AS CORES (short tale - 2006)

-->
O elevador parou e logo o avistei. A sala era completamente branca, alguns sofás, e uma mesinha de centro sem objetos, não fosse um pequeno vaso de samambaia mirrada, quase sem vida. Ele estava sentado, também de branco, segurando uma bengala prateada, na posição de quem estava impacientemente me aguardando, quem sabe, apenas uma miragem. Os olhos sem cor, com uma camada gelatinosa por cima, fixaram-me demoradamente de longe.
Quanto ele estaria enxergando?
E de longe pude sentir a vibração negativa daquela cena sem matiz, de um branco metálico que me intranquilizou.  
- Você está horrível, disse ele antes de me aproximar.   
Coloquei as emoções de lado, refleti friamente sobre suas palavras que me tocaram. Quer queira, quer não, correspondiam à verdade. O estado de meu corpo refletia algumas noites passadas em branco, e saber que isso transparecia me deixou ainda mais intranqüilo. Mas, em segundos recompus esses sentimentos levando-os ao meu porão sem luz e desprovido de cores, onde guardo tantos outros mesclados e ainda não digeridos. De forma alguma poderiam explodir. Mais fácil implodir. Pude ver aquelas imensas vísceras colorindo todo o ambiente de vermelho, marrom, azul e amarelo. Do equilíbrio que essas cores pudessem fornecer ao ambiente, mesmo que fosse a desintegração do meu corpo, deu-me um certo quê de alento. Afinal, as cores produziam sentimentos bem diversos daquela cena carregada de branco, o luto para os orientais, a universalidade da fuga da realidade, e a paz, pura simbologia utópica.
Por que hoje ele estaria todo de branco e a bengala daquela cor metálica... Nenhuma cor de fundo.
- Vamos, ajude-me a levantar. Vamos até o jardim. É primavera, vi as flores crescendo como meus filhos: umas violetas, outras vermelhas... Odeio as amarelas, me tiram do sério.
- Mas que jardim, que flores!? Descendo os elevadores só há aquela imensa avenida dissonante, cheirando a pó. Vamos ficar por aqui mesmo e conversar um pouco, relembrar os seus bons tempos. Veja! Trouxe uns livros que você mesmo me deu ano passado, disse eu.
- Por que eu haveria de querer os livros que te dei? Disse ele visivelmente irritado apontando a bengala branca para os livros.
Como eu poderia trazê-lo à realidade e dizer que não havia mais nada a não ser aquela sala, os quartos, e o elevador que tinha me conduzido. Doía muito vê-lo naquele estado, e sem querer destemperei:
_ Você está cada vez mais velho e caduco..., e antes de terminar a minha frase, ele perguntou:
- Quem escolheu essas roupas pra você? Por que todo de amarelo. Sabe que eu odeio o amarelo.
- Sempre escolho o que visto, não imaginei que fôssemos nos ver... Estamos perdendo tempo, vou pedir o tabuleiro de xadrez. Imagino que você não tenha esquecido de como se joga.
- Jamais poderia ter esquecido o que nunca aprendi! Peça o jogo de damas, talvez  dominó. Melhor, eu mesmo vou buscar. É bem provável que você se perca nesses infindáveis corredores.
Não vi o tempo passar. Encontrei uma mancha na parede e por ali fiquei, divagando sobre aquela cena de cinza embolorada ao redor da janela com grades.
Por que haveria de ter grades? Seria a primeira pergunta assim que ele voltasse com o jogo. Mas eu não esperei.
 Tinha estado tantas vezes naquela sala em outras visitas que já tinha perdido a conta e não tinha percebido o quanto ela era incômoda. E agora, as grades. Não havia aquelas grades. Senti-me prisioneiro. Levantei-me repentinamente daquele transe de cinza e apertei o elevador para fugir dali com a intenção de nunca mais voltar. Estava cansado daquelas feições que em tudo lembravam um passado desmedidamente autoritário e que tinham servido apenas para tolher a minha parca liberdade. De nada ele gostava em mim. Falava dos cabelos, da altura, do porte físico, da minha profissão, dos meus hobbies, da forma como me vestia. Nada parecia agradar-lhe. Então, que estava eu fazendo ali? Se pelo menos houvesse o jardim, onde pudesse sentir o equilíbrio do verde e a tranqüilidade das violetas... Quanto delírio! Somente naquela cabeça insana poderia haver um jardim.
Apertei o elevador e me dirigi aos meus próprios aposentos, no quarto 113. Olhei ao redor e achei que já era tempo de pedir para pintarem algumas paredes de laranja, talvez uma na cor vermelha, e as grades continuariam amarelas. Mas quem conseguiria permanecer naquele ambiente com tais cores? Quem sabe teria o dissabor de encontrá-lo no refeitório no dia seguinte, talvez assim pudesse lhe pedir perdão pela minha aspereza de chamá-lo de velho caduco. Ao entardecer vestiria o uniforme azul para demonstrar-lhe a minha infinita tristeza e melancolia, isto se ele batesse na minha porta com muita insistência para eu abrir. 

CHEIRO DE ARGILA (short tale - 2005)

-->
Bastou sentar.  Começou a sentir uma coceira nos dedos do pé esquerdo. Sem a ajuda das mãos, tirou as botinas sujas de barro, depois as meias empoeiradas, quase vermelhas, quase da cor da argila. Num movimento para cima e para baixo, estalou os dedos, e depois abriu um a um. Ficou observando as unhas grandes e sujas, o peito peludo. O cheiro era de barro e mato misturado à carne fresca da dor. Um pequeno arranhão na lateral externa, e um pouco de vermelho seco sobre os dedos. Examinou todos os detalhes.
Estremeceu ao pensamento.
Repetiu a mesma cena com o pé esquerdo. Usou o direito para coçar o esquerdo. Meticulosamente, com as pontas dos dedos iniciou a fricção do calcanhar para a planta e depois para os dedos, em seguida o peito. Dos pés. Eles eram grossos ásperos, tinham vida própria. Mesmo descalços não seguiam trilhas nem caminhos abertos, sentiam prazer em percorrer e fazer a picada sem facão, só pela percepção.  Não tinham sinais de idade, eram maduros e experientes pela visual força e vigor.   
Mexiam com o imaginário e a fantasia delas. Era sempre a mesma sensação quando percorriam caminhos pelas redondezas. Um frio na espinha subia pelos corpos daquelas que já tinham passado pelas experiências desses passos largos, firmes e eréteis. De certa forma, poderiam lembrar práticas chinesas, mas invertidas, os pequenos pés femininos, às vezes purulentos, retorcidos e enfaixados para não crescerem demais e tomarem um tamanho apropriado para os companheiros. Fonte de inesgotáveis prazeres, tanto lá como aqui, prontos para um embriagado e excitante gozo.
Um deleite os pés afundando no barro da chuva, na subida das montanhas cheias de pedras pontiagudas. Um deleite a calça arregaçada e os pés conduzindo a vida agrária. Uma orgia apertar o cavalo sem precisar de esporas para trotar. A força em cima da tora de madeira para recortar em lenha.  
Antes caras aventuras, era agora um cansaço para o corpo. Foram se transformando em indesejáveis desejos, insaciáveis necessidades. Cada caça carregada de sensações. Eram ágeis, silenciosos e mortíferos.  
Estremeceu ao pensamento.
A leitura chegava àquelas extremidades. Não gostavam da censura, os seus pedidos  eram ordens. Melhor não estremecer. Melhor não pensar.
Mas não pôde evitar, refez as cenas na retina de horas atrás, quando o chão de tábua da varanda deu um repicar de ruído e movimento, e esse movimento em efeito cascata chegava à sala. Aguardou a entrada pelo reconhecimento das pegadas do arrastar dos chinelos indolentes. Olhou para os pés da conhecida que se achegava na hora inexata e errada de chegar. Seus pés traiçoeiros roçaram os dela só pra fazer um mimo, um agrado, pra dissimular que era da vontade o início do jogo. Havia irritação e violência. Era só olhar pra eles. Tentou impedir, mas eles foram mais rápidos, não havia como frear um instinto, uma compulsão, uma vontade maior que ele.  De um golpe seus pés fizeram a vítima. Com as botinas calçadas, o corpo e os outros pés foram enterrados. Aquele arranhãozinho, tão pequeno sarava logo. A água quente da chaleira foi entornada no tacho de cobre com um bocado de sal grosso. A coceira passou logo. Os pés se roçaram num gesto de satisfação.

3 de dezembro de 2005.

Maria Helena Charro

IMAGENS LABIRINTICAS


Resumo:

Este trabalho faz um breve relato sobre o novo paradigma da contemporaneidade  denominado pelo espanhol Josep Catalá de cultura visual. A partir de seus estudos sobre imagens, Catalá considera que há um desenvolvimento epistêmico em que  a conexão múltipla entre realidade, olhar e  representação formam um ecologia propícia à produção de fenômenos ou imagens complexas. Sob a perspectiva da  proposta do autor, este trabalho elege e descreve três cenas filmicas de “Fale com Ela”, ano de 2002, obra cinematográfica de Pedro Almodóvar, para investigar a ocorrência de imagens complexas. Entre as cenas escolhidas há duas performances coreografadas pela bailarina Pina Bausch e uma tourada espanhola, elementos paradigmáticos que remetem a rituais e labirintos da Antiguidade.  

Palavras chave: imagens complexas – cultura visual – rituais – labirintos    
O olhar, a realidade e a representação

Ao escrever “As seis propostas para o milênio” na década de 80, Ítalo Calvino já pontuava a velocidade ligada aos avanços tecnológicos e a “chuva ininterrupta” das imagens  como riscos que poderiam reduzir toda comunicação “a uma crosta uniforme e homogênea” provocada pelos mass media. Dentre as qualidades do que se deveria trazer para este milênio na produção de poéticas (literária, figurativa, musical) estaria segundo Calvino, a visibilidade, não aquela que corresponde na atualidade aos desdobramentos  da máxima do filósofo irlandês George Berkeley (1685/1753) do “ser é ser percebido”, mas sim a visibilidade relacionada ao imagético como elemento indispensável para a criação artística, uma vez que o pensamento é feito da associação de imagens permitindo a rapidez mental para a apreensão dos significados antes da linguagem, conforme o autor. Se por um lado a velocidade é inerente aos avanços técnicos e a cultura já não pode mais prescindir deles, Calvino alertava sobre os riscos da perda da capacidade do imaginário, da memória visual interna pela avalanche de imagens que sufocariam esse mesmo imagético interior, a necessidade que deveria caracterizar toda imagem como forma de impor-se ao foco e à atenção, com riqueza de significados possíveis. Do alerta, Calvino passa a propor uma pedagogia da visão: A primeira delas seria mudar-lhes o sentido, isto é reciclar as imagens usadas adicionando-as em novos contextos, e a segunda seria uma proposta radical: apagar todas essas imagens e recomeçar do zero (CALVINO, 1995 :73,111).
Na atualidade, segundo o pensador espanhol Josep Catalá, deve-se recomeçar do zero quando se pensa numa nova epistemologia das imagens. Segundo o autor houve um século inteiro para a transição da cultura da imagem pura e simples para a imagem visual, sem, no entanto, nos darmos conta conscientemente desse novo processo de modelo. Deve-se portanto esquecer a forma negativa e apocalíptica de como a “era das imagens” têm sido conceituada e denominada de sociedade do espetáculo desde a década de 50 tanto por Heidegger quanto por Guy Debord e outros pensadores que os seguiram, conceitos esses que são inadequados e datados porque pertencem a uma fase anterior a este novo paradigma denominado por ele de cultura visual, de acordo com o autor.
Diz Catalá, em sua obra “La imagen compleja”, que a era da imagem está ligada conceitualmente ao modelo linear e sintagmático na construção do texto lingüístico; quando ainda se pensava na tríade “emissor-código-receptor” como todo processo comunicativo em que o espectador absorvia um simulacro temporal expressado através da linearidade sem retorno desse movimento incluindo a imagem. A imagem na nova acepção da cultura visual proposta pelo pensador, já não se permite mais ser um simples acessório do texto, mas uma imagem trabalhada que ele denomina de complexa. A imagem isolada na recente atualidade já não existe, mas imagens sempre no plural, como um conglomerado englobando uma ecologia, uma multiplicidade do visível (CATALÁ, 2005:43).
Ao se referir à multiplicidade como um dos elementos para este milênio, Ítalo Calvino, de igual forma relaciona o termo a um emaranhado complexo, uma simultaneidade de elementos heterogêneos que concorrem para a determinação de cada evento. O múltiplo é esse conjunto de rede de conexões das coisas do mundo, dos eventos e das pessoas diz Catalá ao citar a definição de Calvino. Para a compreensão da incomunicabilidade entre as imagens, Catalá fornece o exemplo de um passado recente em que uma obra de arte era sempre apreciada de forma isolada das demais, assim como quando se tomava um livro com imagens não estavam relacionadas entre si, nem por aqueles que as produziam, e nem por aqueles que as recepcionavam. (CATALÁ, 2005).
Sintetizando, para entender a transição do isolamento para a multiplicidade, o teórico da cultura visual recupera entre outros, os termos “entre-captura”[1] e estruturas dissipativas[2], que fornecem as noções da complexidade sob a perspectiva da ecologia, onde podem ocorrer dentro dos sistemas desdobramentos imprevisíveis ou o imponderável como uma nova estética, um evento singular, termos estes que expressam e criam na contemporaneidade as condições propícias para a representação do complexo, conforme descrição do autor:
...La entre-captura se refiere tanto a la relación entre o todo  y las partes como a la de éstas entre si, dando cuenta del hecho de que lo importante no est tanto el que el fenômeno sea múltiple, sino que esta multiplicidad transforme sin cesar a cada elemento que lo compone, así como al conjunto que forman todos ellos. Em cuanto a la idea de estructura dissipativa, ésta nos enfrenta com la energia que impulsa al grupo múltiple y que lo convierte em um incesante proceso, lo que constituye uma muestra de desequilíbrio positivo, propulsor: pretende gestionar la relación fundamental entre cambio y estabilidad. (CATALÁ, 2005:61)

O resultado dessas representações, isto é, da entre-captura e das estruturas dissipativas, contém aquilo que o autor considera as características do conceito da estética da arquitetura neobarroca[3], diferindo totalmente dos elementos neoclássicos do passado recente. É nesse pósmodernismo de estética com características marcadamente neobarrocas que a imagem complexa deve se situar, conforme o mesmo autor. (CATALÁ, 2005:60).

Assim como Ítalo Calvino defende uma pedagogia do olhar, o teórico da cultura visual considera que a imagem do século deve ser didática para a “saúde da sociedade”, acrescentando que não é somente necessário que as imagens tenham uma composição complexa, mas que um olhar complexo se volte a elas. A conexão múltipla entre a realidade, o olhar e a representação “forman así una determinada ecología que produce fenómenos incontrovertiblemente complejos” (CATALÁ, 2005:66).

Imagens complexas
Catalá observa que essas imagens complexas não são mais a superfície do mundo como uma janela de representação do real, mas elaboradas, como já se disse, didaticamente abrindo espaço para solucionar problemas, abrir o leque de expressões que ampliam a cognição, uma vez que nem a simplicidade de uma imagem, nem mesmo um texto são capazes de traduzir no todo o mundo do real. Isto significa que uma imagem complexa poderia expressar racional e esteticamente a complexidade do real, e se tornar verdadeiramente científica.
Em linhas gerais, as principais características de uma imagem complexa, segundo o autor:
Opacidade – Enquanto as imagens tradicionais são transparentes, representam superficialmente o mundo, a opacidade de uma imagem pode ser construída como um mapa e que nos obrigam a focalização nossa atenção para decifrar a sua representação. Uma imagem transparente pode se tornar complexa quando se observa duas temporalidades, um tempo do observador sobreposto a outro tempo que é o da própria imagem.
Positiva – A característica positiva se contrapõe à imagem mimética, quer dizer que a imagem na cultura visual deixa de ser reprodução simples do real para ser fundamentalmente pedagógica e criativa. Uma imagem que proponha pontos de referência com a realidade, sem no entanto recorrer ao realismo.
Reflexiva – Uma imagem reflexiva é um projeto para o futuro, uma concorrência entre imagens tradicionais e as novas tecnologias que devem cumprir a funcionalidade didática e estética, podendo ser consideradas multimagens potencializadas digitalmente unindo-se aos textos e sons. Ao passo que a ilustração como imagem funcional tinha apenas a característica de reproduzir ou reforçar o que já vinha escrito num texto.
Interativa – A interatividade se opõe à espetacularização. Neste caso a virtualidade é o elemento vital para a compreensão da imagem interativa, o modelo mental da interface[4].
Visualidade pós-científica – Este traço de imagem complexa pretende reunir arte e ciência numa mesma imagem, uma vez que a ciência nem sempre é capaz de mostrar determinados fenômenos, enquanto  a arte pode ser um caminho de ampliação para o conhecimento. (CATALÁ, 2005:  )


Embora a interface seja considerada como uma ferramenta do futuro para fundamentar todo um imaginário complexo, conforme Josep Catalá, o espetáculo cinematográfico ainda não perdeu sua força como um dos espaços mentais mais importantes desse mesmo imaginário.  A técnica do cinema é considerada adequada para captar e representar fenômenos do tipo da multiplicidade, conforme o próprio autor, levando-nos a investigar no Filme “Hable com Ella” de 2002, do diretor Pedro Almodóvar a ocorrência de imagens complexas.

Cenas fílmicas

Se a estrutura do teatro grego, conforme Catalá, foi o primeiro modelo do espaço mental do Ocidente, em que o espectador contemplava em comunidade conservando sua individualidade com o mecanismo de “identificação” aristotélica[5], o filme originário da “câmara escura” da Renascença com sua perspectiva monocular possibilita um maior grau de atenção, além de se considerar que o cinema cria conexões múltiplas de empatias, pertencimentos e suas gradações, como quem percebe um mundo se organizar diante de nós, conforme observa Merleau-Ponty.
Por detrás de uma obra fílmica há um tempo lento autoral de criação e produção que ao mesmo tempo concorre para uma polissemia de sentidos complexos. Está-se numa sala escura, diante de uma ampla tela com panorama de grande profundidade de campo para recepcionar um mundo que se lança, um mundo construído com a multiplicidade dos sentidos, no mais das vezes, filosoficamente para se deixar ver, refletir, imaginar e criticar questões existências de vida e morte. Conforme Merleau- Ponty, a recepção de um filme não é pensado mas “percebido”, uma obra de arte lançada no mundo em que há um “deciframento tácito” de coexistir com a cena, onde existe uma elaboração maior e mais condensada que o da vida real. Esta realidade ficcional, essa memória recorrente ou abissal estaria ligada ao imaginário mais profundo, ligada ao processo mental do homem, que na sua passividade individualizada de foco e atenção recepciona um mundo particular, um espaço tempo peculiar de estar no mundo. É a possibilidade, ainda conforme Ponty, de admirar e fazer ver e perceber a existência “de um elo cósmico, entre um eu e um próximo, entre o indivíduo e o universo”, assim como o italiano Calvino pretende fazer uma apologia da literatura para o milênio como um ideal a ser conquistado, uma obra da qual “fosse possível sair da limitação de um único eu e permitisse entrar em outros eus semelhantes, e fazer falar o que não tem palavra”.  (CALVINO, 1995:138), (MERLEAU-PONTY, 1983:115,116,117).  

Observa Ponty que o filósofo e o cineasta concorrem no mesmo sentido de reflexão, uma vez que a filosofia contemporânea não é feita de encadeamento de conceitos, mas na descrição da “fusão da consciência com o universo, seu compromisso dentro de um corpo, sua coexistência com as outras; e este assunto é cinematográfico por excelência.” (MERLEAU-PONTY, 1983:117). O filme “Fale com Ela” tem esse comprometimento, o de lançar a sua poética filosófica de ambivalência da vida e da morte, do feminino e do masculino, como transformações de valores para encarar a existência. Para mudar a mimésis e o tradicional da representação do drama, Pedro Almodóvar trabalha com a estética do câmera-stylo[6], como se reporta André Bazin ao cinema de autor onde o filme está além de uma montagem que visa tão somente uma espetacularização ao tipo hollywodiano (BAZIN,1983:131). A proposta do cineasta Pedro Almodóvar  ao elaborar o seu enredo dentro de uma narrativa clássica, do encadeamento dos acontecimentos interpõe elementos paradigmáticos que reforçam a filosofia autoral para este milênio, coincidindo com uma mudança de valores masculinos para os femininos. Se os protagonistas da obra cinematográfica de Almodóvar são homens, estamos diante de homens que carregam um alto grau de características da feminilidade como a sabedoria intuitiva, a sensibilidade e o acolhimento. Numa de suas falas, a personagem Katerina Bilova fala a Benigno sobre a produção coreográfica de seu novo espetáculo: “Da morte vem a vida. Do feminino emerge o masculino. Da terra surge o etéreo”. 
O filme é uma narrativa contemporânea, rodado em Madri. O enfermeiro Benigno Martin (Javier Câmara) vive em um apartamento em frente a uma academia de balé comandada por Katerina Bilova (Geraldine Chaplin) e acaba por se apaixonar por uma de suas alunas, a bailarina Alicia Roncero (Leonor Watling). Alicia é atropelada e entra em coma profundo vindo a ser hospitalizada no mesmo local de trabalho de Benigno. É Benigno quem passa a cuidar de Alicia diariamente com banhos, corte de cabelo, unhas e massagens durante quatro anos. O jornalista Marco Zuluaga (Dario Grandinetti) e a toureira Lydia Gonzalez (Rosário Flores), carentes pelas suas perdas amorosas iniciam um curto romance. Lydia, em uma de suas apresentações é atingida por um touro e considerada clinicamente morta e internada no mesmo hospital onde está Alicia. Benigno e Marco tornam-se grandes amigos num tempo de espera e de proteção às duas “adormecidas”.   
Como elementos paradigmáticos, além das cenas de balé, são privilegiados, além do mais, a seleção de músicas de Bach, Tom Jobim, a trilha sonora “Raquel” de Alberto Iglesias, e a presença de Caetano Veloso interpretando Paloma, entre outros, compondo uma poética sonora  à narrativa. Destaca-se para investigação ainda que não exaustivamente, apenas três desses modelos ligados entre si e ao todo da obra fílmica, e que correspondem, segundo esta pesquisa, a uma ressignificação de antigo ritual praticado no Antigo Egito.
Paolo Santarcangeli, em seu livro “Los Labirintos”, conta que o drama da morte e renascimento do mito Osíris era representado por três tipos de dança: a dança do Lamento, a dança da Proteção e a dança da Fertilidade. Os elementos paradigmáticos eleitos para este trabalho na obra fílmica surgem também nessa mesma ordem, no entanto a dança da Proteção, “que era executada por homens armados, defensores do corpo de Osíris”[7] no Antigo Egito, é substituída pela tauromaquia. A proteção e os cuidados são dados por Marco e Benigno durante o desenrolar da obra.

Labirintos, danças e jogos
A vida dança qual uma cortina de chamas, a morte enrijece; a inteligência dança, a burrice se fixa, repetitiva; a intuição dança, a lógica e a memória programam os robôs, a palavra dança quando nasce e desaba no estereótipo; o desejo dança, a indiferença dorme.
Michel Serres
1. A dança do lamento
Na abertura do filme “Fale com Ela”, uma cortina vermelha se abre e no palco a encenação de uma parte do espetáculo “Café Muller” de autoria da bailarina alemã Pina Bausch(1941-2009). Duas mulheres de túnica branca, entre elas Pina Bausch, movimentam-se como sonâmbulas numa dança de lamento, de profundo sofrimento. Um homem surge e solidariza-se como pode com a dor das mulheres, retirando as várias cadeiras e mesas do caminho na tentativa de atenuar-lhes o sofrimento. Marco e Benigno estão sentados lado a lado na platéia e não se conhecem. Benigno flagra as lágrimas de Marco. Na cena seguinte Benigno cuida de Alicia em coma, e mesmo assim relata toda a cena vivida no espetáculo, inclusive de Marco, e ainda mostra o seu troféu: uma foto de Pina Bausch e uma dedicatória: “Supere todos os obstáculos e comece a dançar”. Conforme Santarcangelli, a dança do Lamento era um culto à morte de Osíris que teria governado o Egito em época de grande prosperidade e opulência, ensinando aos homens técnicas de civilização e agricultura. No culto a Osíris consta que há a intervenção de alguns homens, mas são as mulheres principalmente que dançam representando a dor de Isis, esposa e irmã de Osíris, e Neftis, sua irmã (SANTARCANGELI, 2002:75).

2. A tauromaquia 
Nesta cena não há passes de corrida na tourada; Lydia está ajoelhada na Arena no compasso de espera do animal. Decidida e abalada ainda com o antigo romance, prepara-se para o jogo da morte, está com a capa em frente ao corpo, e com um gesto de cabeça firme e positivo, com traços nitidamente masculinos, dá o sinal para enfrentar o animal. Ela aguarda demais, numa fração de segundos tira a capa dupla face, preto e rosa-choque, da frente do seu corpo mas é tarde demais, e o touro de cabeça baixa a assalta com seus chifres. Diz Santarcangeli que no drama da morte e do renascimento de Osíris havia ainda uma luta ritual em frente a um templo sagrado, e assim que o representante do deus-rei chegava, ao invés de ser despedaçado pelos inimigos, conforme o mito, matava-se um touro divino para preservar-lhe a vida. (SANTARCANGELI, 2002:75).
Os touros, sempre estiveram presentes nas culturas antigas, ou como adoração ou como expiação dos pecados do homem. A lenda do labirinto e do Minotauro talvez seja o relato mais popular da Antiguidade perdurando há mais de 3 mil anos de acordo com Santarcangelli. O Minotauro, metade animal, metade homem seria uma expressão do lado da sombra, polaridade sexual, em que o iniciado deve aniquilar para alcançar a sabedoria, a vitória do espírito sobre a matéria. “A victoria de Teseo sobre el Minotauro es la vitória de Teseo sobre si mismo, el bautizo del hombre nuevo em la sangre del Toro-hombre (M. Brion, apud Santarcangeli). A tauromaquia, ainda legalizada na Espanha contemporânea,  guarda a figura arquetípica do Minotauro e lhe acrescenta  talvez com mais vigor o êxtase e a vertigem relacionados à erotização de acordo com o escritor e antropólogo Michel Leiris. Mais do que um esporte, o escritor considera a tauromaquia como uma arte trágica, “lugar onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo”. Leiris fala sobre esse espaço, lugar de um instante:
Um lugar onde os acontecimentos, objetos, circunstâncias têm o poder, por um brevíssimo instante, de trazer à superfície insipidamente uniforme em que habitualmente deslizamos mundo afora alguns dos elementos que pertencem com mais direito à nossa vida abissal, antes de deixar que retornem ... à obscuridade lodacenta donde haviam emergido (LEIRIS, 2001: )

Conforme ainda sua descrição, a possibilidade material de ferimento, da revelação e distensão desse confronto entre um e outro, manifesta-se não apenas a idéia do sagrado, mas um analogia à atividade erótica. Diz ele: “A corrida inteira, à maneira de um sacrifício, tende ao paroxismo: a morte, depois da qual só pode produzir a distensão, como depois da possessão do objeto desejado no amor, ou como depois da morte do herói na tragédia”. O sacrifício é o momento máximo de tensão... quando há a “conflagração do deus com o sangue da vítima, seguidos dos ritos de distensão: dessacralização, afastamento do deus, que já recebeu sua parte...” (LEIRIS, 2001:60). Lydia, no entanto é a vítima, entra em coma vindo a falecer meses depois.


3. A dança da Fertilidade
No desfecho do filme “Fale com Ela”, a personagem Marco está no teatro assistindo à performance “Fogo”, o elemento da transmutação, e terminado o primeiro ato, no intervalo, troca olhares com Alicia,  já restabelecida do coma, em companhia da bailarina Katerina Bilova. À parte, Marco diz à Katerina que precisam conversar sobre o suicídio de Benigno, uma simples conversa, mas nada é simples para uma bailarina, diz Katerina. A performance recomeça, tendo ao fundo do palco uma pequena cascata ornada de plantas, e os pares de homens e mulheres descalços vão surgindo da esquerda para a direita, um a um perfilados tomando o espaço horizontal do palco, ao som da música “Raquel”, trilha sonora de Alberto Iglesias. As mulheres, de costas, com vestidos simples dançam com seus homens de chapéu num único e repetitivo passo e ondular de quadris femininos, sempre à direita.   Conforme nos relata Santarcangeli, a dança da Fertilidade era executada por bailarinos de ambos os sexos com a finalidade de ressuscitar o corpo de Osíris. A dança representava ainda uma celebração de núpcias sagradas, da fertilidade, como as ancas das bailarinas na cena fílmica de Almóvar, e que o espectador pode relacionar com o filho nati-morto de Alicia, fruto da ação obsessiva de Benigno para trazê-la de volta à vida.  Na platéia Marco busca o olhar de Alicia.

O risco de perder-se

Nos rituais de dança pela morte e vida do Mito Osíris existe uma indiscutível presença de três elementos, conforme nos relata Santarcangeli: a tumba, o labirinto e a dança (SANTARCANGELI, 2002:76). Diz ele que qualquer estudo relacionado ao labirinto deveria inicialmente passar pela dança, uma vez que de acordo com todos os documentos arqueológicos a dança e o labirinto estão sempre conectados, além da tumba relacionada à tragédia, guardada em caminhos sinuosos, labirínticos para não serem profanados, aguardando a ressurreição eterna do corpo, quando não menos ao mistério. Rituais de dança assim como os passes da tourada colocam ordem no caos, passos labirínticos que servem como o fio de Ariadne, como diz Leiris. (LEIRIS, 2001: 42)
Investigando a cidade de Creta, uma das ilhas do mediterrâneo, anterior à antiguidade greco-latina, Santarcangeli relata que essa ilha teria tido o grande mérito de ensinar a vida civilizada a todas as populações do Ocidente, isto é condições de fazer intercâmbio de suas riquezas culturais em cem cidades descritas por Homero, com a sua capital, denominada de Cnossos, lugar de Minos. O nome de Minos poderia estar ligado a toda uma era denominada de minóica ou mesmo condensada ao redor de uma única pessoa, ao mito de Minos. (SANTARCANGELI, 2002:83, 84).  Foi em Creta onde se situou a lenda de Dédalo que se atribuiu a construção do palácio de Cnossos, o primeiro recinto das danças sagradas, local do labirinto onde estaria escondido o Minotauro. Ao que parece, porque as escavações ainda não terminaram, o famoso labirinto de Cnossos era uma construção cheia de sinuosidades e meandros, aparecendo nas moedas cretenses e designaria o próprio palácio, e em termos religiosos cretenses, segundo algumas versões, o Labirinto seria o útero, Teseo o feto, e o fio de Ariadne, o cordão umbilical, conforme Junito Brandão. (BRANDÃO, 1998: 56). Assim como Santarcangeli menciona que o labirinto para determinados autores é a casa da Mãe Terra, um arquétipo, a Grande Mãe Minóica, Junito Brandão fala da importância inquestionável do papel da  mulher tanto na religiosidade como na vida política de Creta: a mulher na ilha de Minos não governava, mas reinava, diz ele.  Fato é que tanto Santarcangeli e Junito Brandão consideram que a lenda do labirinto, dos cultos e suas danças teriam migrado para a Síria, Egito e Grécia, onde é possível relacionar o mito de Osíris e suas danças originarias de Creta, vindo a dar origem inclusive ao sincretismo cretense com o helênico: encontro do masculino helênico com o feminino minóico. (BRANDÃO,1998: 70).
O labirinto é dança, jogo e mistério colocando ordem na existência; é permitir que o mundo siga seu devido curso obrigando a natureza a proteger o homem, diz Johan  Huizinga. É o homo ludens operando o jogo, um fato mais antigo que a própria cultura, ultrapassando as necessidades biológicas porque embora haja sempre um “faz-de-conta”, as suas regras não podem ser quebradas, são jogos repletos de significados. Nesse espírito de fantasia e imaginário, há uma limitação no espaço, um terreno delimitado, mundo temporário, isolado, fechado e sagrado onde se respeitam essas regras invioláveis, sair do cotidiano para se jogar no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade (HUIZINGA,  ). Mas pode-se desvendar essa imagem labiríntica, “trazer à tona o que uma mente teria concebido”, como o fio de Ariadna, um primeiro tipo de labirinto, o mais simples chamado de univiário por Umberto Eco ao introduzir o prólogo no “Libro de los  laberintos” de Santarcangeli. Umberto Eco cita o arbóreo como o segundo tipo de labirinto, mais  complexo que o anterior, necessitando de deciframentos maiores para não se perder, mas há uma saída. O terceiro é o labirinto rizomático que tende ao infinito, nosso mundo contemporâneo como as redes (ECO, 2002:15:16), ou mais precisamente, de como somos tecidos. Mas  na simples complexidade univiária das imagens labirínticas propostas por Almodóvar não faltam poéticas e muito a decifrar.
 

 Artigo produzido em 2010,  por ocasião de término de disciplina da docente Profa. Dra. Dulcilia H. S. Buitoni "Poéticas e estéticas contemporâneas", do programa de Mestrado da Cásper Líbero.
 
  

Referências Bibliográficas

BAZIN, André. Morte todas as Tardes. In: In: XAVIER, Ismail (Org.) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983.
BRANDÃO, Junito e Souza. Mitologia Grega, v.1. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.
BUITONI, Dulcilia. Poéticas e Estéticas. In: Aulas de Disciplina. São Paulo: Cásper Líbero, agosto a dezembro, 2010.
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o próximo Milênio. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
CATALÁ, Josep M. La imagem compleja: la fenomenologia de las imágenes em la era de la cultura visual. Ballaterra: Universitat Autônoma de Barcelona; Servei de Publicacions, 2005.
Fale com Ela, filme de Pedro Almodóvar. Sinopses, 2002. http://www.adorocinema.com/filmes/fale-com-ela
________ Trailler. http://www.youtube.com/watch?v=vXvW6aLoyh8&feature=related
________Trilha sonorahttp://www.youtube.com/watch?v=giNEk_cMs7U&feature=related
ECO, Humberto. Prólogo. In: SANTARCANGELI, Paolo. El Libro de los Laberintos. Madrid. Ed Siruela, 2002.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. Perspectiva.
MERLEAU-PONTY, Maurice.O cinema e a nova psicologia. In: XAVIER, Ismail (Org.) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983.
LEIRIS, Michel. Espelho da tauromaquia.São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001
SANTARCANGELI, Paolo. El Libro de los Laberintos. Madrid. Ed Siruela, 2002.
SERRES. Michel. Os cinco sentidos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
 





[1] Entre-captura = termo alcunhado por Isabelle Stengers citado por Josep Catalá. A entre-captura estabelece os nexos entre duas entidades de maneira que cada uma redefine positivamente a identidade da outra, como uma etapa de conexões que constitui como novo conjunto fundamentado no acontecimento. (CATALÁ, 2005:  60) 
[2] Estruturas dissipativas – o termo de Ilya Prigogine sobre o conceito da entropia, a segunda lei da térmodinâmica, citado por  Josep Catalá, em que pode surgir o novo dependendo da interação com o ambiente que o rodeia, e que oferece um mecanismo próximo ao “entre-captura”. (idem)
[3] Neobarroco -
[4] A interface, conforme Catalá: “tipo de imagem metafórica capaz de relacionar o usuário com um conglomerado multimediático de índole informativa e didática”.

[5] Identificação aristotélica: separação entre o sujeito e o predicado (?)
[6] Caméra-stylo – cunhada por Alexandre Astruc para se referir “ao cinema de autor, onde o cineastra trabalha com a câmera como o escritor sério manuseia a pena, ou seja, visando à expressão pessoal, à comunicação de sentimentos e ideias os mais complexos”.
[7] SANTARCANGELI, 2002:75