quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

CHEIRO DE ARGILA (short tale - 2005)

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Bastou sentar.  Começou a sentir uma coceira nos dedos do pé esquerdo. Sem a ajuda das mãos, tirou as botinas sujas de barro, depois as meias empoeiradas, quase vermelhas, quase da cor da argila. Num movimento para cima e para baixo, estalou os dedos, e depois abriu um a um. Ficou observando as unhas grandes e sujas, o peito peludo. O cheiro era de barro e mato misturado à carne fresca da dor. Um pequeno arranhão na lateral externa, e um pouco de vermelho seco sobre os dedos. Examinou todos os detalhes.
Estremeceu ao pensamento.
Repetiu a mesma cena com o pé esquerdo. Usou o direito para coçar o esquerdo. Meticulosamente, com as pontas dos dedos iniciou a fricção do calcanhar para a planta e depois para os dedos, em seguida o peito. Dos pés. Eles eram grossos ásperos, tinham vida própria. Mesmo descalços não seguiam trilhas nem caminhos abertos, sentiam prazer em percorrer e fazer a picada sem facão, só pela percepção.  Não tinham sinais de idade, eram maduros e experientes pela visual força e vigor.   
Mexiam com o imaginário e a fantasia delas. Era sempre a mesma sensação quando percorriam caminhos pelas redondezas. Um frio na espinha subia pelos corpos daquelas que já tinham passado pelas experiências desses passos largos, firmes e eréteis. De certa forma, poderiam lembrar práticas chinesas, mas invertidas, os pequenos pés femininos, às vezes purulentos, retorcidos e enfaixados para não crescerem demais e tomarem um tamanho apropriado para os companheiros. Fonte de inesgotáveis prazeres, tanto lá como aqui, prontos para um embriagado e excitante gozo.
Um deleite os pés afundando no barro da chuva, na subida das montanhas cheias de pedras pontiagudas. Um deleite a calça arregaçada e os pés conduzindo a vida agrária. Uma orgia apertar o cavalo sem precisar de esporas para trotar. A força em cima da tora de madeira para recortar em lenha.  
Antes caras aventuras, era agora um cansaço para o corpo. Foram se transformando em indesejáveis desejos, insaciáveis necessidades. Cada caça carregada de sensações. Eram ágeis, silenciosos e mortíferos.  
Estremeceu ao pensamento.
A leitura chegava àquelas extremidades. Não gostavam da censura, os seus pedidos  eram ordens. Melhor não estremecer. Melhor não pensar.
Mas não pôde evitar, refez as cenas na retina de horas atrás, quando o chão de tábua da varanda deu um repicar de ruído e movimento, e esse movimento em efeito cascata chegava à sala. Aguardou a entrada pelo reconhecimento das pegadas do arrastar dos chinelos indolentes. Olhou para os pés da conhecida que se achegava na hora inexata e errada de chegar. Seus pés traiçoeiros roçaram os dela só pra fazer um mimo, um agrado, pra dissimular que era da vontade o início do jogo. Havia irritação e violência. Era só olhar pra eles. Tentou impedir, mas eles foram mais rápidos, não havia como frear um instinto, uma compulsão, uma vontade maior que ele.  De um golpe seus pés fizeram a vítima. Com as botinas calçadas, o corpo e os outros pés foram enterrados. Aquele arranhãozinho, tão pequeno sarava logo. A água quente da chaleira foi entornada no tacho de cobre com um bocado de sal grosso. A coceira passou logo. Os pés se roçaram num gesto de satisfação.

3 de dezembro de 2005.

Maria Helena Charro

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