quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

AS CORES (short tale - 2006)

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O elevador parou e logo o avistei. A sala era completamente branca, alguns sofás, e uma mesinha de centro sem objetos, não fosse um pequeno vaso de samambaia mirrada, quase sem vida. Ele estava sentado, também de branco, segurando uma bengala prateada, na posição de quem estava impacientemente me aguardando, quem sabe, apenas uma miragem. Os olhos sem cor, com uma camada gelatinosa por cima, fixaram-me demoradamente de longe.
Quanto ele estaria enxergando?
E de longe pude sentir a vibração negativa daquela cena sem matiz, de um branco metálico que me intranquilizou.  
- Você está horrível, disse ele antes de me aproximar.   
Coloquei as emoções de lado, refleti friamente sobre suas palavras que me tocaram. Quer queira, quer não, correspondiam à verdade. O estado de meu corpo refletia algumas noites passadas em branco, e saber que isso transparecia me deixou ainda mais intranqüilo. Mas, em segundos recompus esses sentimentos levando-os ao meu porão sem luz e desprovido de cores, onde guardo tantos outros mesclados e ainda não digeridos. De forma alguma poderiam explodir. Mais fácil implodir. Pude ver aquelas imensas vísceras colorindo todo o ambiente de vermelho, marrom, azul e amarelo. Do equilíbrio que essas cores pudessem fornecer ao ambiente, mesmo que fosse a desintegração do meu corpo, deu-me um certo quê de alento. Afinal, as cores produziam sentimentos bem diversos daquela cena carregada de branco, o luto para os orientais, a universalidade da fuga da realidade, e a paz, pura simbologia utópica.
Por que hoje ele estaria todo de branco e a bengala daquela cor metálica... Nenhuma cor de fundo.
- Vamos, ajude-me a levantar. Vamos até o jardim. É primavera, vi as flores crescendo como meus filhos: umas violetas, outras vermelhas... Odeio as amarelas, me tiram do sério.
- Mas que jardim, que flores!? Descendo os elevadores só há aquela imensa avenida dissonante, cheirando a pó. Vamos ficar por aqui mesmo e conversar um pouco, relembrar os seus bons tempos. Veja! Trouxe uns livros que você mesmo me deu ano passado, disse eu.
- Por que eu haveria de querer os livros que te dei? Disse ele visivelmente irritado apontando a bengala branca para os livros.
Como eu poderia trazê-lo à realidade e dizer que não havia mais nada a não ser aquela sala, os quartos, e o elevador que tinha me conduzido. Doía muito vê-lo naquele estado, e sem querer destemperei:
_ Você está cada vez mais velho e caduco..., e antes de terminar a minha frase, ele perguntou:
- Quem escolheu essas roupas pra você? Por que todo de amarelo. Sabe que eu odeio o amarelo.
- Sempre escolho o que visto, não imaginei que fôssemos nos ver... Estamos perdendo tempo, vou pedir o tabuleiro de xadrez. Imagino que você não tenha esquecido de como se joga.
- Jamais poderia ter esquecido o que nunca aprendi! Peça o jogo de damas, talvez  dominó. Melhor, eu mesmo vou buscar. É bem provável que você se perca nesses infindáveis corredores.
Não vi o tempo passar. Encontrei uma mancha na parede e por ali fiquei, divagando sobre aquela cena de cinza embolorada ao redor da janela com grades.
Por que haveria de ter grades? Seria a primeira pergunta assim que ele voltasse com o jogo. Mas eu não esperei.
 Tinha estado tantas vezes naquela sala em outras visitas que já tinha perdido a conta e não tinha percebido o quanto ela era incômoda. E agora, as grades. Não havia aquelas grades. Senti-me prisioneiro. Levantei-me repentinamente daquele transe de cinza e apertei o elevador para fugir dali com a intenção de nunca mais voltar. Estava cansado daquelas feições que em tudo lembravam um passado desmedidamente autoritário e que tinham servido apenas para tolher a minha parca liberdade. De nada ele gostava em mim. Falava dos cabelos, da altura, do porte físico, da minha profissão, dos meus hobbies, da forma como me vestia. Nada parecia agradar-lhe. Então, que estava eu fazendo ali? Se pelo menos houvesse o jardim, onde pudesse sentir o equilíbrio do verde e a tranqüilidade das violetas... Quanto delírio! Somente naquela cabeça insana poderia haver um jardim.
Apertei o elevador e me dirigi aos meus próprios aposentos, no quarto 113. Olhei ao redor e achei que já era tempo de pedir para pintarem algumas paredes de laranja, talvez uma na cor vermelha, e as grades continuariam amarelas. Mas quem conseguiria permanecer naquele ambiente com tais cores? Quem sabe teria o dissabor de encontrá-lo no refeitório no dia seguinte, talvez assim pudesse lhe pedir perdão pela minha aspereza de chamá-lo de velho caduco. Ao entardecer vestiria o uniforme azul para demonstrar-lhe a minha infinita tristeza e melancolia, isto se ele batesse na minha porta com muita insistência para eu abrir. 

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