14-junho-2017- Fico pensando no infinitamente infinito
spinoziano. Escureceu mais cedo nesta tarde de outono. Estados de duração. Abro a janela do alto do edifício, as luzes da
maioria das casas já estão acesas mas os homens e mulheres que trabalham não
devem ainda ter chegado em casa. Olho para o
trânsito, consigo cheirar a poluição que castiga os moradores desta
cidade. Há pouca gente na ruas, os
cachorros estão quietos. Porque? Se já passa das !8h? Não há vento nem garoa,
mas um céu nublado, um pisca intermitente de uma torre, algumas luzes amarelas.
Apenas um cachorro começa a latir. Já
são todos urbanoides. A temperatura está baixa para esta época do ano. Eles
devem estar com frio. Ouço o relógio de pêndulos na sala completamente quieto.
Não estou só. Os objetos, móveis e todos os penduricalhos, as plantas e a minha Julie, estão um a um interligados no meu raio de
pressentimentos.
30-junho- O cuco está quebrado. Não há som do tic-tac,
mas ausência de som da engrenagem desse objeto. Deve haver som exalando dos
assoalhos, da caixa do cuco, do porta perfume entalhado, das madeiras
orvalhadas que se retraem serenamente no outono. Em cada ruído, uma duração, um
tempo que passa. O som não é o tempo, mas ele conta o tempo. Como na batuta do
maestro: um, dois, três…, dando início aos instrumentos. No outono, a cada
alarme de carro disparado, é possível ouvir infinitas folhas secas rolarem, sem
se dar conta de que é possível contá-las. É ouvir todos os dias de manhã a
senhora de lenço amarrado varrendo a calçada se queixar das folhas secas no
chão: - Quanto lixo! E todos os dias, até a minha Julie já sabe, que elas apenas
são materialidades em decomposição, servindo de tapete para fazer arte de rua,
pixando a calçada de amarelo ferrugem. Temporalidades distintas para Bergson,
Einstein, Deleuze, Lapoujade, e quem mais. Muitos outros filósofos se ocuparam
desse tema, como o pré-socrâtico Heráclito definiu aión como um tempo do acaso,
do jogo e da brincadeira, ou um enorme período de tempo ou a eternidade, ou
ainda transformado em kairós, o tempo certo ou oportuno. Quando o tempo é
oportuno?
O que conta? O eterno retorno, as estações, as
colheitas, a rotina, as festas, o voltar para casa. Com o cronos, a flecha do
tempo. Os segundos, a música, os séculos? Os ossos. Tudo conta. Como se conta
cada uma das preciosas pérolas ou margaritas arrancadas com torniquete das ostras
ou mexilhões, formando preciosos brincos, pulseiras ou colares, hoje cultivados
artificialmente pelos japoneses, e vendidos a granel pelos chineses como pura
imitação. Predadores dos mares, das pérolas, das baleias. Viveremos mil anos no futuro, mesmo com ameaça
do antropoceno? Haverá mundo por vir?, pergunta Viveiros de Castro. A ciência
quer que nos submetamos a ela. Transformar a natureza das coisas, da
materialidade e do espaço para um tempo, uma duração para além do tempo finito.
Não se trata do infinito spinoziano. Ele se assemelha às temporalidades
deleuzianas… infinito enquanto dure uma intensidade. Pode ser atemporal?
04-julho - Mas e as teorias outras que nos levam a
vibrações distintas e a compossíveis paralelos ? A escolhas que já fizemos através
dos mantras, pensamentos, sentimentos e emoções? Sentada ontem na poltrona
recebendo infusão no ambulatório quimioterápico lembrei com perfeição da
pequena criança correndo agasalhada com uma malha listada de vermelho e branco,
pernas nuas e pés descalcos recebendo o frio como quem compartilha, na língua
do tatibitati, os seus segredos de gozo de pele gelada a um confidente
especial, o frio. Uma grande descoberta. Corria e soltava gritinhos de alegria
quando tentávamos alcançá-la. Alegria pura. Um instante, um momento que dura a
eternidade.
Em
oposição, recordei da mulher que varre a sua calçada me indicando um produto
farmacêutico para queda do meu cabelo cortado com máquina três.
Três
semanas depois do início do tratamento o chão do banheiro estava repleto de
cabelo. No dia seguinte lá estava eu pedindo para passar a máquina. – Tem
certeza? – Não é melhor esperar? Não! O mais difícil é a perda do cabelo, ia
acabar ficando uns pequenos tufos, como muitos que arrancam os seus cabelos literalmente
porque não há mais o que fazer. – Sim, corta. É melhor não cortar, mas arrancar
a erva daninha pela raiz. Mas os cabelos… não, não. Cortar como podar,
potencializar. Senti uma grande fadiga, as pálpebras tinham dificuldade de se
manterem abertas. Olhei de viés para os meus olhos no primeiro exame positivo,
e eles estavam caídos sem vida, perdidos em vazios. – Tem muito cabelo ainda. Não precisa cortar
agora. Raspa! Esperei tirar tudo, passei a mão na cabeça, e a sensação foi
deliciosa. Gostei do espetado e só aí olhei para o espelho. – Parece um homem,
vovó! Hoje ele passa a mão para fazer carinho. Kairós ou Aión? Um tempo
oportuno que é pura intensidade.
11-julho - O tempo pode não contar, suspender, parar
para as intensidades, mas é o terrível cronos que marca o conta-gotas da bolsa
de remédios e veneno descendo pelo micro tubinho de plástico entrando direto na
veia. Antialérgico, corticoide,
antinausea. Herceptin que vai em busca de ainda algum DNA intruso, e por fim a toxina
que mitiga o nosso sangue, o taxol, responsável pela queda do cabelo e pelos,
da cor amarelada da pele, vampiro que vai sorvendo e varrendo tudo o que está
pelo caminho. O que vai acontecer? O corpo amolece sem resistência, os
pensamentos cessam, mas não é possível dormir, sublimar o tempo. A vigília é
constante, pode-se ouvir as batidas do coração, os gemidos dos órgãos, a saliva
no canto da boca, quando tem. Deixa lá molhar o travesseiro, como uma velha.
Aguarda-se a intensidade da vida, a palavra carinhosa que vou absorvendo a cada
manhã que acordo, a cada noite que escorrego e desço pelos lençois, cobertor e
edredon. Apalpo o travesseiro, as plumas de ganso se agrupam e a constante
presença de uma mão passa pela minha cabeça quase sem cabelos. Aninhada, em
paz, não há memória para visitantes inoportunos, apenas sensações. “A minha
carequinha”, ele diz.
28-julho – Poucas foram as intercorrências. Com procedimento da retirada da vesícula foram
duas semanas sem as sessões de quimio, e
outras duas semanas com resfriado, que não atrapalharam as idas ao
departamento de oncologia. Se tinha medo das picadas de agulha, dos remédios
entrando no corpo, eles já não causam qualquer surpresa e são enfrentados
virtuosamente, porque se aprende desde a primeira sessão que não adianta fazer
beiço, cara de choro, de sofrimento. É pior, a veia estoura, e aí a a mulher de
branco ameaça, vai doer mais porque a busca não cessa, mais uma espetada aqui e
mais outra saltada, ou mais profunda. Dá para ouvir o som da agulha entrando na
pele e só depois de um tempo que parece infinito, agulha e veia se encontram,
fazem a a sua composição utilitária. Impiedosas todas elas.
10/10/2017
- Para o nosso mundo, para realidade
que conhecemos, é necessário o tempo, o cronos, a flecha do tempo linear, mas o
inconsciente ignora o tempo. Diz isso Spinoza, a física quântica, o ativista
quântico Goswami. Um salto para a não localidade, a intuição, buscar no
inconsciente os Arquétipos atemporais e descobrir propósitos. E onde vivem os
arquétipos? Fora do tempo e do espaço, na não localidade, onde é possível a
comunicação sem sinal, instantânea. E isto parece ser místico porque transcende
o tempo e o espaço da realidade material e a sua relatividade. Aqui no espaço
tempo parece que tudo está separado, precisamos de sinais para a comunicação,
dos dedos no teclado, do telefone, da voz, materialidades infinitas. Mas o
digital só foi possível no campo quântico, diz Goswami. Difícil abstrair e sair
da física mecânica, dos tubos de infusão, de todas as nossas vivências
cotidianas. Mas há algo que não é matéria, vaga na não localidade.
Potencialidades infinitas de transformação.
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