Penumbras.
Georges Didi-Huberman, na
obra “A sobrevivência dos vaga-lumes”, traz inúmeras leituras sobre esses
insetos fluorescentes, utilizados ao longo do tempo pelo imaginário de artistas, como o cineasta Pier Paolo Pasolini.
Os vaga-lumes morreram para muitos. Aos poucos foram sendo obscurecidos pelo neofacismo,
pela claridade ofuscante do poder, pela sociedade do espetáculo e suas telas,
como se a humanidade se deixasse levar pelo conformismo de um tempo em que a
esperança tivesse se esvanecido como uma lenda, sobrando apenas a desesperança.
No entanto, diz Huberman, há os que fixam o olhar para longe dos holofotes, e
como numa aparição, escondidos nas matas, longe das grandes cidades envoltas em
nuvens de fumaça, eles podem ser vistos na penumbra, por alguns que não se
deixaram levar pelo ceticismo, por aqueles que também não se deixaram cegar
pela onipresença dos clarões desses tempos. Esses sinais intermitentes de
pequena luminosidade, podem ser vistos, nas bordas, nas margens, onde habitam
como comunidade clandestina de resistência, e continuam a produzir seus
efeitos, um desvio `a deriva da subserviência e da perda do corpo na
virtualidade.
É
com esse sentimento que nos referimos `a COMCULT. Pequenas comunidades de resistência, não apenas produtoras
de conhecimento, mas também pelo seu potencial de reflexão e participação na
transformação cultural e social, abrindo espaços para o estudo do corpo. Uma
primeira mídia, como disse Harry Pross em 1972: e no sentido semiótico, um
texto que carrega muitos outros textos, ou platôs como pontuou Norval Baitello
já nos idos de 1999.
Corpo. Visitações. Afecções. O conceito semiótico de corpo como comunicação, como texto,
nos remete a outras nomeações como caixa de ressonância, misturas, fluxos e
atmosferas que nos atravessam, caosmose e seus agenciamentos, surgindo daí a
subjetivação, a singularidade. Um
corpo aberto à multiplicidade de afecções as mais dóceis e as mais danosas como
a experimentação do abandono, da violência simbólica, da evacuação de
refugiados em tempos de guerra, da desocupação de áreas para empreendimentos
imobiliários, da perda da terra para a construção de usinas. São afecções que
se movimentam, atravessam a pele, alojam-se no corpo. Peter Sloterdijk, em sua
obra Esferas (2009), diz que o corpo
é um receptáculo oco, penetrável, frágil e sensível às visitações: uma
intimidade que se dobra e se desfaz aos caramelos, não mais herói, mas possuído
pelos seus semelhantes, onde a reflexão humana evidencia que há um jogo
incessante de contágios afetivos.
Mas,
o homem sábio para Spinoza é aquele capaz de utilizar a sua potência de agir
para refrear e regular os afetos lúbricos ou negativos, pois que não temos
domínio absoluto sobre eles. Regulando os afetos indesejados podemos padecer
menos, diz Spinoza, surgindo desse conceito a diferença entre servidão e
liberdade, entre sujeição e o novo homem. Sabemos no entanto que o projeto
humanista, do bom homem universal, fracassou há muito tempo. E desse projeto
colapsado, está em curso um outro, o da biotecnologia, ou seja, a
antropotécnica, que tem como proposta explícita intervir na seleção pré-natal,
visando um futuro evolucionário da espécie, uma realidade de higienismo, de
acordo com a polêmica palestra intitulada “Regras para o parque humano”, de
Sloterdijk, na Baviera.
Sobre
a concretude das intervenções tecnológicas sofisticadas para a seleção da
espécie humana, sabemos, também pela ciência, que a manipulação genética não
garante características desse bom homem. Elas se constroem, são contaminadas
pelas experiências do entorno, e o espaço íntimo a ser construído depende dos
visitantes de um primeiro jogo de afetos. Mas, ao fracassar esse primeiro
invólucro na infância, haverá psicoses, loucuras, desassossegos. Conforme Boris
Cyrulnik, uma falência afetiva nesses primeiros anos pode provocar distúrbios
comportamentais, lesões cerebrais da emoção, como o atrofiamento do sistema
límbico. Acontecimentos e experiências de forte impacto não se apagam, e quando
são visitas intrusas permanecem no mundo íntimo da criança, criando marcas no
corpo e na mente. Conforme
Cyrulnik, crianças com carência de afetos, quando solicitadas, não conseguem elaborar um sistema mental de
quietude, e em qualquer ocasião, quando chamadas, produzem um estado de alerta,
como a aceleração dos batimentos cardíacos, o rubor na face, o embotamento da
cognição.
Consideradas
como seres inferiores na maioria das vezes e porque são as mais vulneráveis na
hierarquia da família nuclear, as crianças, talvez mais do que as mulheres,
sofrem violências as mais diversas. Os dados estatísticos no Brasil sobre
denúncias contra os direitos das crianças atualmente estão relacionados apenas
`as 40 mil crianças que vivem em condição de abrigamento. Esses dados indicam
que mais de 36% dos casos de violência estão relacionados à negligência
familiar, seguidos em ordem decrescente: dependência química dos responsáveis,
violência física, crianças em situação de rua. carência de recursos da família,
violência sexual doméstica e, por último, a orfandade 4,4%. No Brasil, as
denúncias de violência são apenas uma parte das incontáveis agressões cometidas
contra crianças, isto é, muitos casos acabam fora das estatísticas, aqueles que
existem na vida real, longe das estatísticas, evidenciando-se que há uma
cultura camuflada e oculta a violência infantil no país. Do outro lado, quando
há denúncias, muitas crianças e adolescentes são afastados de suas famílias, e
aqui vale lembrar a frase de Cyrulnik (2005), de que as crianças sem família
valem menos do que as outras, elas são estigmatizadas, alvo de bullying e sofrem a dor da espera de uma
adoção, ou mesmo o retorno ao lar.
Para
a criança que tenha sofrido violência física ou psíquica, haverá carência
afetiva. E a negação dos afetos não está relacionada a determinadas classes
sociais, ao grupos mais vulneráveis como o negro e o pobre, mas a uma falta de
compreensão e intuição sobre o papel familiar e a tradicional crença de que
crianças são seres inferiores.
Winnicott
(pediatra e psiquiatra) trabalhou com crianças na Segunda Guerra Mundial
durante a evacuação da Grã-Bretanha, e a partir de pesquisas em campo, divulgou
amplo relatório sobre os comportamentos antissociais, revelando que a
delinquência está ligada à privação, uma tendência que não se relaciona com uma
carência afetiva, da qual podem surgir as psicoses e que são socialmente
aceitas. A tendência antissocial, conforme o autor, está relacionada
principalmente com o abandono, a falta de um reconhecimento de que ela existe.
Também, de acordo com Cyrulnik, “quando a privação durou tempo demais, quando a
extinção psíquica foi total, ou quando o novo meio não soprou as brasas da
resiliência, a criança terá dificuldade de retornar `a vida.”
Para
ilustrar uma das histórias de vida de jovens, sem amparo e afetos, que ingressam no mundo dos delitos, o
filme, de 1959, Os incompreendidos (Les quatre cents coups, pintar o sete),
de François Truffaut, é uma preciosidade. Este ano, em palestra sobre violência
contra crianças, no Sedes Sapientiae, o desembargador Antonio Carlos Malheiros,
do Tribunal de Justiça de São Paulo, preferiu contar histórias de violência a
teorizar sobre o tema. Disse ele que essas histórias “acontecem onde a ciência
não está”, elas são encontradas “na poeira das ruas, nos esgotos das favelas,
nas celas do sistema carcerário, na cracolândia. ”. Numa dessas andanças,
Malheiros encontrou um adolescente de 15 anos, armado com seu ‘tresoitão’ na
cintura. O jovem disse que os traficantes chegaram antes dos homens do Estado,
da sociedade civil, e levaram dignidade, coisa que os homens da lei nunca
deram. Segundo Malheiros, nós somos o Estado que não chegou à vida deles há
tempo, não chegou à família desestruturada, e não será a prisão que vai
assustá-los. E, no entanto, com a ajuda da grande mídia e suas distorções, está
em pauta no congresso projeto para diminuir a maioridade penal.
Jovens
sem causa estão espalhados no mundo todo. São eles o alvo do aliciamento ao
tráfico, do recrutamento para engordar exércitos fascistas. Quem sabe os
extremistas do Isis (Estado Islâmico) e do Boko Haram já não estejam por aqui
oferecendo uma causa e dignidade!
Encapsulados no virtual. Inspirados
em Sloterdijk, podemos dizer que vivemos
imersos e encapsulados na artificialidade da tecnologia, no que de melhor o
virtual nos proporciona. Nos sentimos imunes à turbulência contemporânea com
suas infecções, epidemias e violências. Outra esfera, outro invólucro, com
pensamentos que podem ser nômades mas não se atualizam porque o corpo está
imóvel, sem a presença dos afetos
e contágios. Muito oportuno é trazer a melhor definição de movimento, conforme
Baitello, de que movimentos são
sempre motins e revoluções. Movimentos, sem os clarões da virtualidade, em prol
de muitos jovens e crianças que sequer sabem o que é dignidade.
"Gosto de viver na obscuridade, no sentido
material como no moral – o homem de visão não goza de liberdade –, eu me
exercito em ver no escuro... Meu corpo de sombra sabe avaliar as sombras,
desliza entre elas, entre o silêncio delas, dir-se-ia que as conhece... a pele
toda vive. A luz negra é tão rara que quase tudo é feito sem o menor acréscimo
de luminosidade, até caminhar por uma estrada em curvas, sem a lua. A planta do
pé começa a saber mais, os ombros roçam os galhos, a pedra do córrego brilha
serenamente. Viver se satisfaz com penumbras"
(SERRES, 2001, p. 63).
Ma. Helena Charro
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