quarta-feira, 11 de junho de 2014

A atualidade do antropofagismo


                                                                                    
La máquina antropófaga es una máquina (maquinofagia) que desestabiliza desde la espacialidade de los márgenes y el afuera la cultura substantiva y con mayúscula. Es una virtualidade... Tan falsa como el simulacro copia y, en esa falsa copia, perde los origenes del referente y de la metafìsica de la presencia. Victor S. Echeto y Rodrigo Browne Sartori

BAITELLO Jr, N.; BROWNE SARTORI, R.; SILVA ECHETO, V. (Orgs.) La maquina antropófaga. Experimentaciones em comunicación e imagen. Valencia: ArCiBel Editores, 2013.           161 p.             


Deixemos de lado a coleção de teorias da comunicação enfadonhas, áridas e uniformes, bem ao gosto daqueles que não exercitam pensamento e criatividade.

            Ao sabor de provocações e movimentos de resistência à redução dos estudos da comunicação relacionados à recepção, tecnologias de informação e seus gadgats, há pesquisadores do campo comunicacional que eliminam fronteiras entre disciplinas enriquecendo e exercitando o debate e reflexões sobre as origens ontogenéticas e filogenéticas da comunicação e da cultura, além de buscar transversalidades nas artes, filosofia, literatura e na antropologia.

            Alguns desses pesquisadores estão na obra “La Maquina antropófaga – experimentaciones en Comunicación e Imagem”, lançada no início de abril deste ano, na Universidade de Playa Ancha, Chile; organizado por Norval Baitello Jr, Rodrigo Browne e Victor Silva Echeto. A publicação, com 161 páginas, faz parte da Coleção “Comunicaciones Nómades”, editora Arcibel de Sevilha, Espanha, trazendo, logo na primeira página, o compromisso de ambular, entrar nos labirintos do conhecimento para apresentar ensaios sobre Comunicação e Cultura.

            Nessa obra em particular, existe, entre os onze autores, um pensamento movente de rebeldia e de transgressão para a investigação da Comunicação e da Cultura, invocando-se escritos e obras de Vilém Flusser sobre imagem e fotografia, a subserviência às máquinas regrando e uniformizando a cultura, o movimento antropofágico brasileiro e seus desdobramentos para outras gulas neovanguardistas, até culminar na máquina antropófaga. Da orgânica e fecunda relação entre os artigos e seus autores há o gérmen de uma teoria da comunicação como teoria crítica da cultura. E este é, segundo os editores, a natureza central desse projeto de pesquisa, condensado no livro “La maquina antropófaga”.  

            Como um lema, um mote para apresentar os autores da obra “La Máquina Antropófaga”, recorre-se ao artigo de José Eugenio de Menezes (pgs.73 a 80) sobre escritos de Vilém Flusser a respeito de conversações. Conversações entre Flusser e seus interlocutores brasileiros e estrangeiros, tendo como cenário o terraço de sua casa no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Nos idos de 19..., Flusser, o eterno migrante, reservava os finais de semana para transformar seu terraço em palco de acaloradas conversações, diálogos e debates, formando espontaneamente aqui e ali pequenos e grandes grupos onde surgiam os mais ousados e criativos pensamentos, além do esperado engajamento político que o momento social e cultural do país exigia, conforme relato de Menezes.

            O livro “La máquina antropófaga” guarda similitudes com as vozes soantes do alvoroçado terraço de Flusser. Os autores ambularam entre países e regiões, investigaram, fuçaram arquivos esquecidos e os pleitearam para torná-los públicos. Apresentaram suas propostas em discussões, seminários, diálogos, trocaram enfim conhecimento, e o ambiente final dessas conversações é o concreto do papel, em que os autores, escrevendo cada um na sua língua mais próxima e familiar, geraram uma obra trilíngue: espanhol, português e inglês, sem traduções. Esses textos, no conjunto, evocam o pensamento nômade, movidos pelo fio condutor dos escritos de Vilém Flusser, e pela reflexão crítico-cultural de nosso tempo. A obra está dividida em duas partes, além do “intermédio” e o Epílogo.

            Na primeira parte, intitulada “De los antropófagos paulistas al devorar culturas de Vilém Flusser”, a tônica da antropofagia  se desdobra: de um lado as máquinas devoradoras e de outro o movimento antropofágico brasileiro que contém em si mesmo o guerreiro que devora o inimigo, o homem colonialista, ideia extraída de conceito de canibalismo ritual, conforme Baitello Jr, às páginas 40: “A atitude canibal ou antropófaga é a manifestação de uma força primitiva que recusa com veemência a passividade e a acomodação bem comportadas”. A primeira parte investiga inclusive os movimentos da arte europeia, o barroco e seu antiesteticismo no Brasil, e a atual castração da arte e da cultura com a chegada de gestores, administradores e fundos de fomento, de acordo com Victor Echeto. Há ainda artigo sobre a Bienal em São Paulo como local de afirmação da arte brasileira; a ideia de Vilém Flusser sobre o “funcionário” programado pelo programa das máquinas, este último apresentado no artigo de Baitello Jr. Há a presença de aranhas, vampiros e amebas e suas lendas sobre devoração e digestão; e a reflexão sobre as políticas do comer e o que se passa com o intestino. Os textos, entrelaçados, nos convidam a citar nominalmente cada um de seus autores na mesma ordem de aparição. São eles: Victor Echeto, Rodrigo B. Sartori, Vinicius Spricigo, Norval Baitello, Rainer Guldin, Eugenio Menezes e Valentina Bulo.

No “intermédio”, às páginas 93, outra surpresa. O antropólogo Juan Carlos Olivares, da Universidad Austral de Chile, apresenta uma crônica descritiva de sua viagem e iniciação sagrada na Sociedade Mapuche – Williche, do sul do Chile. Vale a pena conferir o trecho inicial desse nomadismo poético, considerado pelo autor como convivência pós-moderna:

Esse dolor le desgarró el imaginário, errar em la inmensidad de la vida, el plumerio de la sangre & el ojo de vidrio azul, su nombre & su aliento, la olorosa. Los espejismos sobre el asfalto son los fantasmas de nuestra memoria. Antropologo on the road...”

            A segunda parte, intitulada “De la Antropo a La ontofagia. Devorando las Artes, la Filosofia y la Comunicación”, contém mais quatro artigos com os seguintes autores: Álvaro Cuadra, Malena Segura Contrera, Carolina Norambuena y Mauricio Mancilla e Ricardo Viscardi. Ali, utilizando citações das mais diversificadas áreas do conhecimento, os autores refletem e levantam questões sobre as imagens, como o artigo de Malena Segura Contrera sobre o paradoxo entre violência e sedação do olhar, trazendo a consequente transformação da função do jornalismo hoje. Há artigo sobre o homo sapiens metamorfoseado em homo videns, o grande olho(?), além de estudo ensaístico filosófico entre homens e máquinas, e a concepção das tecnologias da informação como poder de dominação e controle do outro.

            Ao final, no epílogo, texto integral de Vilém Flusser sobre a Gula e os famintos, seus pecados e perversões, publicado no Estado de São Paulo em 1963, no Suplemento Literário.

            Um convite à leitura desta obra múltipla e diversa.

Nenhum comentário: