Nem tudo se encaixava. Era uma
memória fragmentada, como nos
oníricos quadros surrealistas. Existe o esforço de capturar algumas imagens
ligadas àquele momento, mas elas são como espelhos distorcidos e multiplicados.
Melhor do que o vazio é poder descrevê-los mesmo que imprecisamente.
Essas as imagens que brotam:
As mulheres dançavam, os
homens continuavam jogando. As mulheres se enfeitavam, os homens continuavam
jogando. As mulheres compravam as fichas, os homens continuavam jogando. As
mulheres faziam novas amizades, os homens continuavam jogando. É assim no
passado, no presente e no futuro. Que venha outra revolução. É sempre assim.
Eram 23 horas. Era a vez de João
embaralhar as cartas, e com uma
ilusão de ótica as cartas se separavam de cima para baixo, da mão esquerda para
a direita, empilhadas e soltas umas das outras, fez isso tantas vezes que o
tempo parou naquele pano verde misturado com o barulho da impaciência das
outras fichas que rodopiavam tanto quanto as cartas do baralho. A intenção era
impressionar os novos amigos; teria, isso sim, surtido um efeito inédito se não
tivesse demorado tanto. Entre um "vamos lá"," tá
bom", "já chega". ... João Augusto finalmente perguntou aos cinco jogadores se alguém ficaria de
fora do primeiro jogo. Ninguém, evidentemente. E dali em diante a conversa
seria entrecortada, uma piadinha aqui, um suspiro de desconforto, um gemido de
felicidade, as fichas passando de mão em mão, as cartas sádicas que se negavam
a vir, as que se multiplicavam aos inúmeros pedidos. O tin tin dos copos, os
mordíveis patês, o se deliciar com o vinho para os iluminados, e a cerveja e o uísque para os demais. Pernas buscando roçar numa pele sedosa, pés que
pediam novos pares, um frenesi de movimentos para contrastar com a paciência
necessária no aguardo das apostas.
Era a primeira vez que nos
encontrávamos. A reunião foi numa casa de jogos onde havia boa música e pista
de dança. João Augusto quase não tinha bebido, estava entretido no jogo,
começava a ganhar. Eu queria entender e conhecer sua personalidade, mas naquele
momento a bebida já tinha iniciado seu percurso e as risadinhas e o ritmo do
som entorpeciam, me levavam a um transe delicioso, sem precisar usar qualquer
raciocínio, enfim estava eliminado o alerta de análise. Ah... mas como era bom revirar as
pessoas sem elas saberem, entender as suas reações, o modo de comer, a pressa
da resposta, o ego partido, a vaidade inflando, ou a auto-estima rodopiando na
roleta dos números. Talvez mais tarde, ou quem sabe num outro jogo. Com muito
gosto tudo aquilo soava um respirar tranqüilo, calmo sem pressa de chegar lá.
Queria mesmo poder desfrutar todos esses momentos avessos a obrigações e ora,
meu deus, análise. Já tinha me cansado de tantas análises, uma canseira sem
tamanho como todos os outros pacientes, sempre esperando resolver problemas, traumas, cegos de si mesmos,
muitos casos como o meu precisando de psicotrópicos, e então o que fazer, senão
passar de mão em mão até chegar ao profissional apropriado. Havia ainda os métodos
alternativos, utilizados em larga escala, só para nos enganar: tantos os
métodos quanto os pacientes, uma população inteira, uma enxurrada de rituais,
magias, cantos, florais, cores, agulhas e mais outras expressões corporais, os
tarôs, as cartas... Tinha esquecido, pr’a quê pensar nisso tudo? Tudo tão bem
embaralhado, e as cartas não vinham. Alguém por acaso estaria trapaceando com
umas cartinhas a mais? Nossa! Estávamos jogando a dinheiro e entre amigos. Não
podia ser. Nem podia pensar nessa hipótese.
- Ah! Uma trinca de Ases!
Ganhei. Até que enfim.
Mas senti os olhares caírem
como um relâmpago em cima de mim. Meu deus, que maus fluidos. Nunca pude
imaginar. Meus recém amigos fazendo bico, me olhando de soslaio. Até parecia que eles
eram as vítimas, e eu?
- Gi, um pouco mais de vinho,
por favor, pedi. Gi era longilínea , gestos finos e pensados. Empertigada e arrogante,
difícil de sorrir e contar da sua rotineira vida, o que dizer então das suas
aflições e problemas maiores, jamais se abriria para os outros. Mas,
inexplicavelmente abrira suas pernas para João Augusto, ali embaixo da mesa. As
mãos dele às vezes ociosas passeavam por seus músculos meticulosamente
trabalhados. Via-se apenas um mordiscar de lábios no seu canto esquerdo, mais
nada.
Vivian sentada ao lado de João
Augusto, sempre que podia apertava o seu braço, passava suas mãos nas dele,
saindo faíscas. Coisas de adolescente. E se ele não desse a atenção em pouco
tempo teríamos uma tempestade, um rompante de baixaria. Teriam me cochichado
que a Vivi era dada a tais comportamentos, me garantiram. Surtaria a qualquer
momento. Seria o fim de uma noitada tranqüila, poderíamos a qualquer instante presenciar
um choque de gritarias e violência, sim porque com toda certeza ela desceria os
seus punhos na Gi, que era a culpada da desatenção de João Augusto.
Decidimos então abrir o leque
de assuntos para envolvê-la e começamos a relembrar dos filósofos da metade do
século XX, Sartre, Marcuse, ou
então os clássicos... Tudo em vão. Vivi irritou-se com a pauta, queria
amenidades, afinal estávamos num cassino para brindar a tão esperada revolução
das colônias. Finalmente chegara o momento, elas agora passariam ao status de
reino. Sabíamos muito bem que era apenas uma troca de nomes. Estávamos todos
envolvidos no mesmo objetivo e a luta tinha sido difícil, e naquele momento eu não
sabia, tudo em vão. Quase todos tinham sido apagados, as memórias fracas e
remotas, ambíguas e sem limites. Mas os séculos de existência estavam ainda no cerne
do dna, era uma questão de tempo e
paciência. Havia ainda o outro lado oculto para nos esconder. Essa era a arma
de liberdade que possuíamos e nada poderia nos encontrar. Conquistar passo a
passo as informações, chegar no senado, clamar pela nossa frágil individualidade.
Vivi tinha razão, nada de
assuntos que relembravam pestes, doenças, cárceres, incompetência e guerra. Os bárbaros
do passado nos congelavam de medo, o horror das corrupções e os serviços que não
funcionavam, melhor mesmo o trivial que fazia parte do papel que cada um
incorporava.
João Augusto não participava
desse sarau, permanecia impassível, jogava e continuava aumentando suas fichas,
ganhava todas, quase todas, inclusive a umidade de Gi, e não havia um único
traço de emoção. Quando se imaginava um blefe, ele estava ali tranqüilo com uma
quadra. Imaginei que eles não se encaixavam, pareciam iguais. Não havia côncavo
nem convexo. Eram figuras planas aparadas, distantes, nunca tridimensionais.
O que um tinha visto no outro,
eu iria descobrir. Não nessa noite, claro. Nem nunca, jamais! Mas qual a
finalidade de entrar nos mistérios da mente humana? Era uma obsessão, uma
doença, que vinha me acompanhando. Desde o momento que foi vislumbrado que num
futuro próximo não estaríamos a sós com nosso ego eu precisava resgatar os
pequeninos detalhes antes de serem definitivamente apagados. Como uma louca,
uma insana prestes a perder o poder do raciocínio, sentia-me na contingência de
conseguir esses minguados pontos minúsculos que poderiam se diluir.
Não era apenas o novo casal da
mesa que não se encaixava. Eles todos eram intransponíveis e definitivamente
decidi ceder à leitura comportamental.
As mulheres decidiram ir para
a pista dançar.
As revoluções mudam de nome,
sobem como os arranha–céus, mas continuam idênticas, idéias idênticas, uma
camada sobre a outra, umas sobre
as outras, ora um amontoado de lixo com papéis voando, o entusiasmo e depois o
fastio de sempre, sonhos e ilusões que se perdem no infinito desse pequeno
planeta, idêntico à quase totalidade da mente humana, insaciável, mesquinha e
insegura, que almeja poder, às vezes minguado, como ali na nossa mesa de jogo,
e era esse instinto pobre e vil que os outros se apegavam e justificavam para nos apagar.
As mulheres dançavam, os
homens continuaram jogando. As mulheres foram se enfeitar, os homens
continuaram jogando. As mulheres foram comprar as fichas, os homens continuaram
jogando. As mulheres fizeram novas amizades, os homens continuaram jogando. É
assim no passado, no presente e no futuro. Que venha outra revolução. É sempre
assim.
E então, mesmo embriagada,
dançando ao som da flauta eu pude ver, primeiro um burburinho na nossa mesa. Os
homens se levantaram largando o jogo enquanto outros, diferentes, que não
faziam parte do nosso cenário, se acercaram. Fixei o olhar, agucei os
ouvidos...
- Lá está ela, de rosa-choque,
ao lado da de verde, disse João Augusto, o delator.
Eu os reconheci mesmo depois
de tantos tratamentos. Tinham os mesmos rostos, impassíveis, rostos de nada, de
uma máscara intransponível, encerada para que qualquer traço de emoção
escorregasse.
Fugi na penumbra entre
cabelos, vestidos e olhares perdidos na música. Fugi pelas calçadas abarrotadas
de gente indo e vindo e que também seriam, mais cedo ou mais tarde, aprisionadas
pelo que se poderia chamar de conscientes, uns tantos que faziam de tudo para
não serem jogados às celas úmidas e asfixiantes dos laboratórios. Era um jogo
sujo, vendiam-nos por qualquer oferta.
Todos saíam de lá murchos,
espremidos e centrifugados, mas com vida, e poderiam novamente recuperar com o
pouco que ficasse pelo caminho. Recuperar na sua totalidade era impossível. Mas
havia sempre uma esperança. Aqueles malditos armaram a arapuca. Aquela mesa de
jogos era um blefe.
Mas eu fugia, uma fuga inútil,
limitada pelos labirintos das ruas de Veneza. Pensei em me jogar na água, mas
ela fedia, os ratos não paravam de atrapalhar o meu caminho.
A fadiga chegava e a energia
sumia enquanto o pelotão me
cercava.
Encontrei abrigo na alma
enquanto um roupão transpassava o corpo amorfo de uma esquizogente. Não havia
mais porque se debater, eram todos iguais, fascistas, sanguessugas, uns
parasitas infernais. Hibernar para voltar quando o pesadelo tivesse passado.
Maio-2005
Nenhum comentário:
Postar um comentário