sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

O blefe (conto - 2005)

-->

Nem tudo se encaixava. Era uma memória fragmentada, como nos oníricos quadros surrealistas. Existe o esforço de capturar algumas imagens ligadas àquele momento, mas elas são como espelhos distorcidos e multiplicados. Melhor do que o vazio é poder descrevê-los mesmo que imprecisamente.

Essas as imagens que brotam:

As mulheres dançavam, os homens continuavam jogando. As mulheres se enfeitavam, os homens continuavam jogando. As mulheres compravam as fichas, os homens continuavam jogando. As mulheres faziam novas amizades, os homens continuavam jogando. É assim no passado, no presente e no futuro. Que venha outra revolução. É sempre assim.

Eram 23 horas. Era a vez de João embaralhar as cartas, e  com uma ilusão de ótica as cartas se separavam de cima para baixo, da mão esquerda para a direita, empilhadas e soltas umas das outras, fez isso tantas vezes que o tempo parou naquele pano verde misturado com o barulho da impaciência das outras fichas que rodopiavam tanto quanto as cartas do baralho. A intenção era impressionar os novos amigos; teria, isso sim, surtido um efeito inédito se não tivesse demorado tanto. Entre um "vamos lá"," bom", "já chega". ... João Augusto  finalmente perguntou aos cinco jogadores se alguém ficaria de fora do primeiro jogo. Ninguém, evidentemente. E dali em diante a conversa seria entrecortada, uma piadinha aqui, um suspiro de desconforto, um gemido de felicidade, as fichas passando de mão em mão, as cartas sádicas que se negavam a vir, as que se multiplicavam aos inúmeros pedidos. O tin tin dos copos, os mordíveis patês, o se deliciar com o vinho para os iluminados, e a cerveja e o uísque para os demais. Pernas buscando roçar numa pele sedosa, pés que pediam novos pares, um frenesi de movimentos para contrastar com a paciência necessária no aguardo das apostas.
  
Era a primeira vez que nos encontrávamos. A reunião foi numa casa de jogos onde havia boa música e pista de dança. João Augusto quase não tinha bebido, estava entretido no jogo, começava a ganhar. Eu queria entender e conhecer sua personalidade, mas naquele momento a bebida já tinha iniciado seu percurso e as risadinhas e o ritmo do som entorpeciam, me levavam a um transe delicioso, sem precisar usar qualquer raciocínio, enfim estava eliminado o alerta de análise.  Ah... mas como era bom revirar as pessoas sem elas saberem, entender as suas reações, o modo de comer, a pressa da resposta, o ego partido, a vaidade inflando, ou a auto-estima rodopiando na roleta dos números. Talvez mais tarde, ou quem sabe num outro jogo. Com muito gosto tudo aquilo soava um respirar tranqüilo, calmo sem pressa de chegar lá. Queria mesmo poder desfrutar todos esses momentos avessos a obrigações e ora, meu deus, análise. Já tinha me cansado de tantas análises, uma canseira sem tamanho como todos os outros pacientes, sempre esperando resolver  problemas, traumas, cegos de si mesmos, muitos casos como o meu precisando de psicotrópicos, e então o que fazer, senão passar de mão em mão até chegar ao profissional apropriado. Havia ainda os métodos alternativos, utilizados em larga escala, só para nos enganar: tantos os métodos quanto os pacientes, uma população inteira, uma enxurrada de rituais, magias, cantos, florais, cores, agulhas e mais outras expressões corporais, os tarôs, as cartas... Tinha esquecido, pr’a quê pensar nisso tudo? Tudo tão bem embaralhado, e as cartas não vinham. Alguém por acaso estaria trapaceando com umas cartinhas a mais? Nossa! Estávamos jogando a dinheiro e entre amigos. Não podia ser. Nem podia pensar nessa hipótese.

- Ah! Uma trinca de Ases! Ganhei. Até que enfim.

Mas senti os olhares caírem como um relâmpago em cima de mim. Meu deus, que maus fluidos. Nunca pude imaginar. Meus recém amigos fazendo bico, me olhando de soslaio. Até parecia que eles eram as vítimas, e eu?

- Gi, um pouco mais de vinho, por favor, pedi. Gi era longilínea , gestos finos e pensados. Empertigada e arrogante, difícil de sorrir e contar da sua rotineira vida, o que dizer então das suas aflições e problemas maiores, jamais se abriria para os outros. Mas, inexplicavelmente abrira suas pernas para João Augusto, ali embaixo da mesa. As mãos dele às vezes ociosas passeavam por seus músculos meticulosamente trabalhados. Via-se apenas um mordiscar de lábios no seu canto esquerdo, mais nada.  

Vivian sentada ao lado de João Augusto, sempre que podia apertava o seu braço, passava suas mãos nas dele, saindo faíscas. Coisas de adolescente. E se ele não desse a atenção em pouco tempo teríamos uma tempestade, um rompante de baixaria. Teriam me cochichado que a Vivi era dada a tais comportamentos, me garantiram. Surtaria a qualquer momento. Seria o fim de uma noitada tranqüila, poderíamos a qualquer instante presenciar um choque de gritarias e violência, sim porque com toda certeza ela desceria os seus punhos na Gi, que era a culpada da desatenção de João Augusto.

Decidimos então abrir o leque de assuntos para envolvê-la e começamos a relembrar dos filósofos da metade do século XX, Sartre,  Marcuse, ou então os clássicos... Tudo em vão. Vivi irritou-se com a pauta, queria amenidades, afinal estávamos num cassino para brindar a tão esperada revolução das colônias. Finalmente chegara o momento, elas agora passariam ao status de reino. Sabíamos muito bem que era apenas uma troca de nomes. Estávamos todos envolvidos no mesmo objetivo e a luta tinha sido difícil, e naquele momento eu não sabia, tudo em vão. Quase todos tinham sido apagados, as memórias fracas e remotas, ambíguas e sem limites. Mas os séculos de existência estavam ainda no cerne do dna, era uma questão de tempo e paciência. Havia ainda o outro lado oculto para nos esconder. Essa era a arma de liberdade que possuíamos e nada poderia nos encontrar. Conquistar passo a passo as informações, chegar no senado, clamar pela nossa frágil individualidade.

Vivi tinha razão, nada de assuntos que relembravam pestes, doenças, cárceres, incompetência e guerra. Os bárbaros do passado nos congelavam de medo, o horror das corrupções e os serviços que não funcionavam, melhor mesmo o trivial que fazia parte do papel que cada um incorporava.

João Augusto não participava desse sarau, permanecia impassível, jogava e continuava aumentando suas fichas, ganhava todas, quase todas, inclusive a umidade de Gi, e não havia um único traço de emoção. Quando se imaginava um blefe, ele estava ali tranqüilo com uma quadra. Imaginei que eles não se encaixavam, pareciam iguais. Não havia côncavo nem convexo. Eram figuras planas aparadas, distantes, nunca tridimensionais.

O que um tinha visto no outro, eu iria descobrir. Não nessa noite, claro. Nem nunca, jamais! Mas qual a finalidade de entrar nos mistérios da mente humana? Era uma obsessão, uma doença, que vinha me acompanhando. Desde o momento que foi vislumbrado que num futuro próximo não estaríamos a sós com nosso ego eu precisava resgatar os pequeninos detalhes antes de serem definitivamente apagados. Como uma louca, uma insana prestes a perder o poder do raciocínio, sentia-me na contingência de conseguir esses minguados pontos minúsculos que poderiam se diluir.
   
Não era apenas o novo casal da mesa que não se encaixava. Eles todos eram intransponíveis e definitivamente decidi ceder à leitura comportamental.
As mulheres decidiram ir para a pista dançar. 

As revoluções mudam de nome, sobem como os arranha–céus, mas continuam idênticas, idéias idênticas, uma camada sobre a outra,  umas sobre as outras, ora um amontoado de lixo com papéis voando, o entusiasmo e depois o fastio de sempre, sonhos e ilusões que se perdem no infinito desse pequeno planeta, idêntico à quase totalidade da mente humana, insaciável, mesquinha e insegura, que almeja poder, às vezes minguado, como ali na nossa mesa de jogo, e era esse instinto pobre e vil que os outros se apegavam  e justificavam para nos apagar.

As mulheres dançavam, os homens continuaram jogando. As mulheres foram se enfeitar, os homens continuaram jogando. As mulheres foram comprar as fichas, os homens continuaram jogando. As mulheres fizeram novas amizades, os homens continuaram jogando. É assim no passado, no presente e no futuro. Que venha outra revolução. É sempre assim.

E então, mesmo embriagada, dançando ao som da flauta eu pude ver, primeiro um burburinho na nossa mesa. Os homens se levantaram largando o jogo enquanto outros, diferentes, que não faziam parte do nosso cenário, se acercaram. Fixei o olhar, agucei os ouvidos...

- Lá está ela, de rosa-choque, ao lado da de verde, disse João Augusto, o delator.

Eu os reconheci mesmo depois de tantos tratamentos. Tinham os mesmos rostos, impassíveis, rostos de nada, de uma máscara intransponível, encerada para que qualquer traço de emoção escorregasse.

Fugi na penumbra entre cabelos, vestidos e olhares perdidos na música. Fugi pelas calçadas abarrotadas de gente indo e vindo e que também seriam, mais cedo ou mais tarde, aprisionadas pelo que se poderia chamar de conscientes, uns tantos que faziam de tudo para não serem jogados às celas úmidas e asfixiantes dos laboratórios. Era um jogo sujo, vendiam-nos por qualquer oferta.
  
Todos saíam de lá murchos, espremidos e centrifugados, mas com vida, e poderiam novamente recuperar com o pouco que ficasse pelo caminho. Recuperar na sua totalidade era impossível. Mas havia sempre uma esperança. Aqueles malditos armaram a arapuca. Aquela mesa de jogos era um blefe.

Mas eu fugia, uma fuga inútil, limitada pelos labirintos das ruas de Veneza. Pensei em me jogar na água, mas ela fedia, os ratos não paravam de atrapalhar o meu caminho.   

A fadiga chegava e a energia sumia  enquanto o pelotão me cercava.

Encontrei abrigo na alma enquanto um roupão transpassava o corpo amorfo de uma esquizogente. Não havia mais porque se debater, eram todos iguais, fascistas, sanguessugas, uns parasitas infernais. Hibernar para voltar quando o pesadelo tivesse passado.

Maio-2005

Nenhum comentário: