quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Sem contorno (short tale - 2005)


Acuada, fechou a porta atrás de si... Desceu as escadas de dois em dois degraus, segurando firme no corrimão. Não era a primeira vez que tinha sentido um arrepio ao olhar para os quartos de cima, no sobradinho onde morava. Sentia que ali havia gente espreitando, rondando. Quisera saber o que eles queriam dela. Nunca soube.

E agora, nesse pequeno espaço, um misto de terror e medo acompanha o calafrio que vai subindo pelos pés, atravessa as pernas e preenche costas e dorso, o corpo enfraquece, e por fim um arrepio, que vem de dentro para fora, endurece a pele que fica rija, pronta para a defesa. Abre os olhos para se certificar, estão todos ao seu redor fitando-a. Nada se dissipa. Mas o medo aos poucos vai perdendo forças e uma tristeza distante se aproxima quando vem a lembrança do esconderijo atrás da cama,  da calcinha que sujou quando tirou as amídalas, ou embalada pela boneca furada para fazer coco. Volta um pouco mais; aos seis anos as fadas, deuses, papai noel nada disso fazia sentido, enquanto ali ao lado, no mesmo sobrado, tantos mimos, tantas atenções... para eles. A boneca furada e necrosada foi a única que a seguiu até decidirem jogá-la fora sem ao menos ter sido substituída. A ausência de fé era, inexplicavelmente, acompanhada de medo. Menor ainda de tamanho e de idade, os soluços e choros foram interrompidos pela ameaça física, então se calou, e a gagueira foi mais uma tentativa.   

Desse vai-e-vem de memórias, a menina é a mesma crescendo, ouvindo sem ter o poder de emitir aqueles sons aos solavancos. A porta se abre e ruborizada sai com a roupa rasgada. Os chinelinhos de dedo caminham sem destino, vagueiam e voltam. Fecha a porta atrás de si. E a saída da escola era assim, assistindo ali do terracinho naquelas tardes mornas, o barulho dos picolés chupados, os livros passando, sem pressa, embaixo dos braços, os meninos tirando linha, as meninas jogando os cabelos para trás fingindo que não se importavam com os olhares gulosos.  Mas ela ficava ali só olhando, sem participar. Não entendia por que não fazia parte do mesmo cenário. E o cenário lhe fazia muita falta.
Certo dia emudeceu, e de tão muda  a imaginaram tola. A porta nunca mais se abriu.  
21-fevereiro-2005

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