Acuada, fechou a porta atrás de si... Desceu as escadas de dois em dois
degraus, segurando firme no corrimão. Não era a primeira vez que tinha sentido
um arrepio ao olhar para os quartos de cima, no sobradinho onde morava. Sentia
que ali havia gente espreitando, rondando. Quisera saber o que eles queriam
dela. Nunca soube.
E agora, nesse pequeno espaço, um misto de terror e medo acompanha o
calafrio que vai subindo pelos pés, atravessa as pernas e preenche costas e
dorso, o corpo enfraquece, e por fim um arrepio, que vem de dentro para fora,
endurece a pele que fica rija, pronta para a defesa. Abre os olhos para se
certificar, estão todos ao seu redor fitando-a. Nada se dissipa. Mas o medo aos
poucos vai perdendo forças e uma tristeza distante se aproxima quando vem a
lembrança do esconderijo atrás da cama, da calcinha que sujou quando
tirou as amídalas, ou embalada pela boneca furada para fazer coco. Volta um
pouco mais; aos seis anos as fadas, deuses, papai noel nada disso fazia sentido,
enquanto ali ao lado, no mesmo sobrado, tantos mimos, tantas atenções... para eles. A
boneca furada e necrosada foi a única que a seguiu até decidirem jogá-la fora
sem ao menos ter sido substituída. A ausência de fé era, inexplicavelmente,
acompanhada de medo. Menor ainda de tamanho e de idade, os soluços e choros
foram interrompidos pela ameaça física, então se calou, e a gagueira foi mais
uma tentativa.
Desse vai-e-vem de memórias, a menina é a mesma crescendo, ouvindo sem
ter o poder de emitir aqueles sons aos solavancos. A porta se abre e ruborizada
sai com a roupa rasgada. Os chinelinhos de dedo caminham sem destino, vagueiam
e voltam. Fecha a porta atrás de si. E a saída da escola era assim, assistindo
ali do terracinho naquelas tardes mornas, o barulho dos picolés chupados, os
livros passando, sem pressa, embaixo dos braços, os meninos tirando linha, as
meninas jogando os cabelos para trás fingindo que não se importavam com os
olhares gulosos. Mas ela ficava ali só olhando, sem participar. Não
entendia por que não fazia parte do mesmo cenário. E o cenário lhe fazia muita
falta.
Certo dia emudeceu, e de tão muda a imaginaram tola. A porta nunca
mais se abriu.
21-fevereiro-2005
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